terça-feira, 22 de julho de 2008

Interpretação de Texto, de Vida



Quem, na escola, tirou nota máxima em interpretação de texto? Quem aprendeu a pensar com os professores, descobriu, desde cedo, que existem entrelinhas nos textos da vida?

Quem pode afirmar que o claro é branco, não é bege, ou cinza, ou amarelo? Quem sabe que a luz pode ser sol, lâmpada, vela, descobrimento? Quem percebe que a iluminação não é somente o dia claro, mas também o que nos abre caminhos e nos faz ver o que estava escondido? Estava escondido, ou a nossa percepção era falha?

O quanto é muito? Muito amor, muitas saudades. O que quer dizer isso para você? Muito amor é fazer tudo e até mais por quem se ama? Mesmo em discordância? Mas é que eu amo muito... Então me dou em excesso, mas quanto é excesso? Ou dou menos. Mas quanto é menos? E menos que o quê ou quem?

Muita saudade é pensar três vezes por dia, ou três vezes por ano no objeto da falta? Se penso três vezes por dia é porque me sobra tempo e três vezes por ano porque o tempo é escasso? Mas se penso três vezes por dia um milionésimo de segundo e três vezes por ano passo vinte e quatro horas pensando? Quando é muito e quando é pouco? Quem interpreta de quê forma?

Quantos caminhos diferentes podem derivar de uma única frase? Muitas vezes perguntamos qual era a intenção do autor ao escrever ou dizer aquele texto. Mas já nos perguntamos qual era a intenção do leitor ou ouvinte?

Cada um de nós tem somente uma intenção quando nos comunicamos? Quantas vezes dizemos algo, mas na verdade queremos falar outra coisa? E quantas vezes dizemos aquilo mesmo que queremos, mas chega de forma deturpada ao ouvido do outro? O que é deturpado? É quando eu falo uma coisa e o outro entende errado, ou é quando o outro entende errado o que falo? É quando falo errado e o outro entende de sua maneira? É diferente? É a mesma coisa? O que eu quero dizer?

Qual a intenção no momento da fala e qual a intenção no momento da escuta? Por que tantas vezes temos que explicar o que queríamos dizer? É porque dissemos errado, ou o outro entendeu errado? Para quê e por que tantos ruídos na comunicação?

Por favor, alguém me ajude, Freud, Shakespeare, Nietzsche, McLuhan, Chico!

MPV – julho 2008
Foto: Retrato de William Shakespeare

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Fragmentos de Alma


O que mais a incomodava eram as desculpas pelas ausências. Seu comportamento também não era propriamente entendido por ela, somente aceito. Chegar a um compromisso sozinha era quase como não ter ido. A primeira vez que se desligou desse sentimento de aprisionamento foi na festa do tio. Riu, conversou, bebeu e brincou, sem se lembrar do passado, ou do ausente, como se, enfim, liberta das amarras que a seguraram por tantos anos. Ela havia permitido essas amarras, por acomodação, ou por ser o preço a pagar, ou simplesmente pelo tempo corrido sem percepção.

MPV – julho 2008

quarta-feira, 9 de julho de 2008

O Segredo do Gatto


Era uma vez um gato malandro, de pelo branco e olhos cor de mel, patas pretas, camisa listrada, calça de botão e chapéu de panamá, que vivia no Rio de Janeiro. Seu nome era Gatto Caiz e ele era alemão.

Em sua juventude, muitos anos antes, ele havia atravessado meio mundo para chegar ao que antes fora a cidade maravilhosa, em busca de trabalho que rendesse alguns vinténs para sua numerosa família nascida e criada em Mister Raiche.

Saiu de Mister Raiche escondido no maleiro de um ônibus, foi para Stuttgart e, caminhando, chegou a Estrassburgo, com as patinhas meio gastas. De lá, na caçamba de um caminhão de ovelhas, foi para Marselha, onde entrou em um navio cargueiro clandestinamente. A viagem de Marselha a Málaga foi longa e perigosa. Ele era um gato clandestino que facilmente poderia virar comida para os tripulantes do navio. Em Málaga, perambulou pelas ruas até descobrir uma kombi que iria transportar alguns trabalhadores portugueses de volta a Lisboa. Em Lisboa, se escondeu em um veleiro de brasileiros que aportaria no Rio em vinte e sete dias.

No dia 20 de janeiro do ano da graça de mil novecentos e tantos, Gatto Caiz desembarcou no porto do Rio, sujo, faminto e enjoado pela longa travessia. Ele havia conseguido sobreviver comendo carnes salgadas que os velejadores levavam e grelhavam todos os dias.

Quando Gatto Caiz desembarcou no Rio, jurou que nunca mais comeria um pedaço sequer de carne vermelha.

Após algum tempo de Rio, já dominava um português bastante avançado, mas ainda mantinha pesado sotaque.

Com suas habilidades e inteligência, logo conseguiu um emprego em uma fábrica de sardinhas enlatadas, onde não permaneceu, por sua personalidade faminta. Em pouco tempo, o gerente de sua linha de produção reparou que a produtividade havia caído e descobriu por que: a cada dez sardinhas enlatadas, Gatto Caiz comia uma. Foi para a rua sem o salário do mês, mas encheu os bolsos de sardinhas antes de sair.

Andando pelo centro do Rio, leu em um cartaz a solicitação de funcionários para uma fábrica alemã de óculos, a Dom Quixote. Gatto Caiz olhou para o céu e viu ali seu futuro passar diante dos olhos. Como falava o alemão e estava se saindo muito bem no português, foi contratado na hora.

Na Dom Quixote, Gatto Caiz fez carreira e vida. Todos os anos ele voltava a Mister Raiche no fim do verão europeu, a título de reuniões inadiáveis com os donos da fábrica alemã. O que, para ele e seu segredo, era mais do que conveniente.

Um belo dia, Gatto Caiz conheceu a leoazinha Pellyss Parisse e se encantou com aqueles cabelos revoltos, seu pelo claro, seu andar felino. Não seria a Lei Natural das Coisas, já que ele era um gato malandro e ela uma leoa ciumenta. Mas se apaixonaram e ela jurou que nunca o devoraria, mesmo que tivessem que morrer de fome.

A leoa Pellyss também trabalhava, tinha sua vida e eles viviam felizes e contentes, cada um completando o outro. Todos os anos eles faziam uma viagem interessante, o que só reafirmava como gostavam da companhia um do outro. Por comodidade casual, tiravam férias juntos, no fim do verão europeu, após a reunião anual de Gatto Caiz em Mister Raiche.

Certa vez, surgiu um fato novo: Gatto Caiz teria que ir à Mister Raiche em agosto, pleno verão, teoricamente, para uma reunião fora de hora. Pellys Parisse desconfiou quando ele avisou-a da mudança de planos, antecipando a viagem que fariam juntos.

Gatto Caiz embarcou na primeira classe do vôo da Lufthansa para Mister Raiche no dia 20 de julho do ano da graça de dois mil e poucos e não reparou que a leoa Pellys Parisse embarcou no mesmo vôo, na classe econômica, disfarçada de tigresa de unhas negras.

Ao chegarem a Frankfurt, cada um embarcou em uma limusine previamente alugada e a leoa-tigresa seguiu o gato Gatto na longa viagem até a cidadezinha.

Gatto Caiz foi direto para uma casa muito antiga e muito bem conservada – e não para a fábrica, como deveria ser – com um jardim bem cuidado, com lindas flores e uma porta imponente. Quando ele saiu da limusine, a porta da casa se abriu e saíram correndo em sua direção uma gata cor de chucrute e oito gatos de diferentes tamanhos, idades e pelagens. Chamavam-se, do mais velho para a mais nova: Adler, Bach, Gerda, Johann, Kristal, Rauchig, Falk e Heidi. A gata chucrute chamava-se Panzer e era sua esposa alemã.

Na verdade, durante todos aqueles anos, Gatto Caiz havia mantido em segredo sua numerosa família alemã, residente na pequenina cidade e um problema de saúde com o filho Rauchig, inveterado fumante, havia obrigado que ele antecipasse suas férias.

Com isso a leoa-tigresa de unhas negras descobriu tudo e, dentro da limusine, deu um urro, saltando na velocidade de um leão ferido, e, com suas garras afiadas, nocauteou todos; seus dentes afiados estraçalharam, um a um, toda a família gato-chucrute.
Gatto Caiz suplicou por sua vida. Invocou os anos de amor e a promessa dela de que nunca o devoraria.

Pellys, a leoa-tigresa deu um suspiro, cantarolou a música do Rei: “Você foi o maior dos meus casos / De todos os abraços o que eu nunca esqueci / Você foi dos amores que eu tive / O mais complicado e o mais simples pra mim”... e de uma bocada, engoliu Gatto Caiz, o gato malandro mais carioca que a Alemanha já conheceu.




MPV - julho, 2008