quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Três Grandes sobre Lisboa

Domingos Amaral, Enquanto Salazar dormia...

“...nessa Lisboa que estava fora e dentro dela ao mesmo tempo. Local único na Europa, linda e cheia de luz, mas também de medo, a Lisboa onde vivi tanto que, por mais que viva, e muito tempo depois, nunca mais vivi como ali, aqui, nesta Lisboa.”

“... Não podem compreender um dos segredos da humanidade, um segredo estranho e perturbador: em tempo de guerra, o desespero toma conta das almas e as pessoas amam como loucas.”

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Josué Montello, Enquanto o tempo não passa

“Sem calor nem frio, na variedade das cores vivas que lhe ressaltavam a harmonia do conjunto, Lisboa unia agora em mim o presente e o passado, como se o tempo estivesse a fluir sem destruir a si própria. A novidade, ali, era eu mesma, com a experiência vivida e as lembranças intactas, subjacentes a curiosidade do olhar. Se a memória reclamava uma esquina, uma janela, um portal, um balcão, um beiral,..., as pupilas atentas reencontravam a minúcia objetiva, e a emoção do reencontro subitamente se completava.”

“...- Quem foi feliz em Lisboa, e aqui regressa, como estou regressando agora, tem o dom de transformar o passado em presente...”

“...E, a despeito de amar Lisboa e de ter ali velhos amigos e belas recordações, só pensava no meu regresso ao Rio...”

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Miguel Torga, Natal 1968

“...Voltam agora ao berço, roídos de saudades. E não é sem apreensão que os vejo pisar, já menos toscos de aparência, o amado chão da origem. É que muita água correu sob a ponte desde que se ausentaram.

Mas a pátria é um ímã, mesmo quando a universalidade do homem, como neste preciso momento, sai finalmente dos tacanhos limites do planeta. Poucos resistem à sua atração ao verem-se longe dela, seja qual for a órbita em que se movam.

Por mais fortuna que tenham pelo mundo a cabo, é com o ninho onde nasceram que sonham noite e dia. É que só nele se exprimem corretamente, estão certos nos gestos, são realmente quem são.

Pode ser que o exemplo seja seguido, e o êxodo, que empobreceu a nação, comece a fazer-se em sentido inverso, e as nossas misérias e tristezas mudem de fisionomia.”

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009



Conhecemos Mila, o espelho do futuro, uma dachs como eu, sete anos mais velha. Ela já foi da minha cor, agora está bem grisalha, se é que posso dizer assim de seu pelo quase branco. Vimo-nos através de grades, eu não lati, ela teve dificuldade para caminhar. O espelho do futuro, como minha dona falou. Eu mesma, nos últimos três anos, ganhei pelos brancos ao redor de meus olhos, em meu focinho. Deve ser o stress da cidade grande, pode ser somente o passar dos anos. Meu porte ainda altivo, enfrento outros cães, de qualquer tamanho, que latem para mim na rua. Eles não respeitam meus pelos brancos, lato de volta, ferozmente, para mostrar que só a cor está mudando, eu continuo a mesma: forte, impávida, um colosso!
Minha master resolveu sair atrás, bem atrás, de um bloco de carnaval e fomos andando de casa até a rua de mastervó. Subi o Corte com força e paramos algumas vezes para beber água. Uns gaiatos falaram para minha dona "tirar a fera da rua!" em uma referência clara a mim, acho que em tom de deboche. Nem foi comigo. Mas ela riu muito. Se eles insistissem, eu "garrava" na perna de um, só para mostrar com quantos dentes se faz uma mandíbula forte de um cão pequeno!
Bom, agora, depois da farra momesca, uma comidinha gostosa e um banho refrescante, um sono reparador que ainda faltam dois findis para o ano começar.



quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Copos de Cristal

Encho a boca com o primeiro gole de uísque do dia, desce forte e quente, bebo sem gelo. Dou o segundo e o terceiro goles e emito um som de repulsa e satisfação ao mesmo tempo. A lembrança do primeiro gole me vem à mente e encho novamente o copo. Caminho, ainda inteiro, até a varanda, sem sol, lusco-fusco, anoitece na cidade que não dorme. O segundo copo, em três longos goles, desce mais fácil e eu o encho pela terceira e quarta vezes. Sirenes me fazem olhar para a rua movimentada e imagino como seria me desequilibrar e cair do alto de 20 andares. Acho que viraria sopinha de gente e quebraria em mínimos cacos o copo de cristal que seguro, herança de família. O que seria pior? Limpar a sujeira de meu sangue espalhado pelo páteo da piscina ou encontrar os caquinhos de cristal que ferirão as crianças descalças que forem brincar quando a área for liberada? Oops! O equilíbrio foi embora, agora tenho que me escorar nas paredes para encher, talvez, já perdi a conta, o sexto copo da noite. Vejamos: o primeiro foi lá pelas dezoito horas e são... quase oito da noite. Nada mal... Not bad at all... Seis doses do mais puro scotch em menos de duas horas... Como não comi nada durante o dia, geladeira vazia, o efeito é mais rápido e como o álcool me afeta sobremaneira – será que sou um alcóolico? – já não falo coisa com coisa. Mas não falo nada, é só meu pensamento que ecoa em minha cabeça. Acho que o vizinho ligou uma música. Ou será que fui eu que deixei o aparelho ligado desde, desde... quando mesmo? Acho melhor me afastar da grade da varanda. Tropeço em meu caminho e o copo da família espatifa no chão. Rio, gargalho muito, lá se vai o conjunto completo... Conjunto completo, herança de família, nunca mais! Continuo rindo e pego outro copo, encho novamente, a garrafa já está no fim, amanhã terei que lembrar de não andar descalço por aqui.

MPV – fevereiro 2009

Eu Confiei em você

Eu confiei em você. Acreditei mesmo quando todas as circunstâncias me diziam o contrário. Naquela noite chuvosa, você repetiu frases de novela em meus ouvidos e eu não assisto novela. Acreditei. Achei que seria para sempre o que durou pouco. Você cantou, contou sua história, me desarmou dos meus medos, me disse que sua procura terminara. Acreditei. No entanto, você não gostava de sol, não gostava de céu, não gostava de mim. Eu confiei em você quando me impediu de ir embora, desfez minha sacola, quando me sentou em seu colo e chorou em meu ombro. Repetiu que sua procura terminara, sua vida seria outra e eu estaria nela para sempre. No entanto, você não gostava de sol, não gostava de céu, não gostava de mim. Eu confiei em você quando me escreveu cartas de amor, eternizou nossos momentos em fotos agora sem cor, quando sorriu e riu para mim, me enlaçando em seus braços. No entanto, você não gostava de sol, não gostava de céu, não gostava de mim. Finalmente acreditei.

MPV – fevereiro 2009

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Benjamin

O filme de David Fincher, em cartaz nos cinemas, com Brad Pitt e Cate Blanchett é bom, muito bom. Já ouvi críticas negativas que atribuo à imagem deslumbrante do ator, conforme os efeitos de maquiagem o vão fazendo rejuvenescer. Ele fica mais jovem do que realmente é e mais bonito. Talvez outro ator escolhido, a crítica fosse menor. Mas o contraste poderia não ser tão forte.

Mas não é somente sobre o filme que quero falar, é sobre o conto em que foi baseado, de F. Scott Fitzgerald, esse sim, magnífico. Dor, solidão, descoberta e abandono se confundem à medida que Benjamin novo-velho se transforma em velho-novo. A contradição entre desejos e consumação de vontades e a capacidade física chega a doer em alguns momentos. No conto, num realismo fantástico, Benjamin já nasce grande e velho. Velho em todos os sentidos. Conforme rejuvenesce o corpo, a mente acompanha sua involução e ele passa, já velho na idade, mas novo no corpo e imaturo no espírito a querer realizar o que não lhe foi possível anteriormente. Situações ridículas e esdrúxulas acontecem àquele que involui. Chega-se a sentir pena, sente-se dor no estômago e a empatia gerada, no sentido psicanalítico da palavra, entre leitor e personagem é inevitável.

Veja o filme, leia o conto, disponível, em inglês, nos sites de obras em domínio público, ou procure na Livraria da Travessa mais próxima de sua casa. Imperdível.

MPV - fevereiro 2009

Tarde Demais

Eram jovens, bonitos, cheios de vida. Tudo conspirava contra, mas eles tiveram força para continuar. Ele sonhava com céus, estrelas e nuvens brancas. Ela carregava uma segurança incompatível com sua idade. Ele sorria sempre e agia como um menino. Ela enxergava os próximos 20 anos. Ele vivia nas nuvens. Ela sonhava com a vida. Ele voava em seus pensamentos. Ela pensava em voos apaixonados. Ele tornou-se distante. Ela voou para longe. Ele voltava sem estar. Ela tornou-se ranzinza. Ele deixou de rir. Ela passou a chorar. Ele não via TV. Ela reclamava de tudo. Ele tentou sorrir. Ela disse que era tarde demais.

MPV – fevereiro 2009

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Nasci Velho

Nasci velho, embrutecido, nada a ver com Benjamin, do excelente conto de Scott Fitzgerald, cuja essência e ela somente, encontra-se no filme de David Fincher. Nasci antiquado, preconceituoso, reacionário mesmo. Grande juiz dos casos de valor ocorridos em minha vila. Sorriso disfarçado-disfarçava a inconveniência das pessoas ao meu redor, sempre erradas. Se sorriam, se dançavam, se viviam, erravam. Minhas rugas eram internas, de preocupação constante com o olhar do inimigo, com o exame dos outros sobre mim mesmo. Covarde, ao ponto de não querer ver, medroso de olhar o outro lado dos conceitos que nasceram comigo, o velho e embrutecido.

Em um processo lento e tortuoso para mim, instantâneo para quem me conhecia, fui rejuvenescendo e aprendendo a ver com os olhos dos outros os casos alheios. Deu-se o inverso em minha vida. Aqueles a quem julgara por tantos anos, passaram a me julgar, todos que sorriam franziram os cenhos e com os punhos cerrados ao alto, brandiram nomes e correram a me encarcerar.

Já era tarde. A sucessão de mudanças já havia atingido o ponto do não retorno. Dali, não haveria volta. Covardes e preconceituosos, deixei-os pela estrada, busquei novos campos, conheci outros lados, invoquei novos conceitos, e dentre eles, o mais sagrado: a abertura total dos olhos, a busca do desconhecido, a curiosidade a me guiar, fazendo-me um novo homem, um homem novo, jovem no espírito, leve, sem rugas.

O caminho não é fácil e as tentações de peso são inúmeras. Mas nunca novamente serei o homem velho que era quando nasci.

MPV – fevereiro 2009