quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

A Serra e a Cidade


Chove na serra e o meu coração sangra. Numa inversão histórica de Jacinto, deixando Paris, em direção a Tormes, começo a viagem de retorno, saio da serra e volto à cidade grande. As caixas se misturam a malas e sacolas, livros por empacotar, roupas para dar. Olho demoradamente para um casaco grosso, comprido, comprado para graus de menos. Voltarei a usá-lo?

Em minha Tormes, o sol bate no cedro, plantado no centro do gramado, os pinheiros balançam graciosamente à brisa, jacus e toda a sorte de passarinhos vêm comer jabuticabas, gambás perambulam pelo terreno à noite, o gato gordo do vizinho desafia a ira dos cães, mas foge rápido, o gás é entregue em confiança, tudo parece ser, mas não é mais.

Do lado de fora da casa, a chuva fina do verão com temperatura amena bate suavemente em meu rosto, saio para uma volta e os cachorros vêm atrás de mim, sem que eu precise chamá-los. Um dia achei que seria feliz aqui para o resto de minha vida. Mas, para o resto ainda falta muito – acho eu, e a vida que segue em frente não será aqui.

Vejo as montanhas de minha Tormes por trás das brumas da chuva e sei que esse ciclo terminou. A casa está quase vazia, o caminhão na porta, o carro cheio e sei que minha Tormes, nunca deixará de ser minha, apesar de já não ser.

A mudança que era para ser suave, foi brusca; o projeto que era para ser amigo, foi bruto; a mão que era para ajudar, atrapalhou; o domingo que era para ser de renascimento, foi de morte e tudo o que veio depois, não existiu.

A serra dormirá eternamente em meus sonhos, nas lembranças, na esperança do sol da cidade grande que, agora, iluminará meus dias.

MPV - dezembro 2007

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Ode a um amigo eterno


Auditório dos Correios cheio, mil lugares sentados e todos ocupados à espera do palestrante internacionalmente conhecido. Um murmúrio reverenciado, cochichos aqui e ali, o atraso nada comum em eventos desse tipo.

Nos bastidores, o "staff" tenta convencer o jovem palestrante a entrar e dar o seu recado. Para isso, ele recebe em euros, a moeda preferida das grandes celebridades. Ele balança a cabeça negativamente, como se houvesse mudado de idéia, não querendo mais participar daquilo que chama de "farsa".

Entra no camarim, Seu Raimundo Leonardo, o todo-poderoso da seita na qual o palestrante é o mais carismático e o que consegue angariar mais fundos. Seu Raimundo ordena que o palestrante saia debaixo da mesa, onde esteve dormindo, usando seu moletom vinho amarrotado. O palestrante sai, veste o blaser, penteia seus cabelos semi-longos e se dirige à platéia.

Uma salva de palmas, assobios, gritos e urros, como em pleno maracanã, explode na platéia quando o palestrante entra. Ele pede silêncio com as mãos, obrigado, obrigado, balança a cabeça afirmativamente e sorri o seu sorriso perfeito e inesquecível. A platéia começa a fazer silêncio, algumas garotas mais exaltadas, gritam Lindo! Ele sorri encabulado.

Quando o silêncio é feito, ele pega o microfone e diz bem alto: "Em primeiro lugar, gostaria de dizer que MEU NOME NÃO É ZÉZA!!!"

A platéia delira.

Ele continua, "Meu nome é Pesa-o-Marco, sou palestrante da seita Sopa de Letrinhas e não tenho nada a ver com essas mulheres que dizem fazer parte de meu grupo. Bândida Colé, Maria Vira-o-Mato e Sônica Meiga não são minhas amigas! Pinguelli Boya-Nessa é o cáften dessas usurpadoras!

Não vou mais compactuar com os escândalos que assolam esse país! sou um palestrante importante, amigo de Danielle, Winston, Elvis, casado com Rachel Welch, pai de João Francisco Guimarães Rosa e Joaquim Pedro Blanc! Sou um homem sério! Mandela janta em minha casa todos os sábados, terminei minha amizade com Bill porque ele não soube preservar a instituição do matrimônio, e enquanto Rabinho e Ararate não fizerem as pazes, não voltarei em seu sítio, meu nome não é Zéza!"

A platéia rola pelo chão, possuída pelas declarações de seu líder. As notas de euros começam a encher os cofrinhos em formato de tênis que circulam nas mãos das "pesetes", todas vestidas pela grife "Mandão de Quatro". Seu Raimundo entra no palco nesse momento e puxa o palestrante que não é Zéza pelo braço, sua intervenção acabou.

O palestrante que não é Zéza volta para o camarim, veste novamente o moletom vinho e volta a dormir embaixo da mesa até a próxima palestra que poderá ser no Rio, em São Paulo, Bali, ou Kinshasa.
Até a próxima!


MPV - dezembro 2007

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

RF, Sonhos

" Trago rosas na boca e estrelas nos olhos.
Minha história é de sonhos recalcados -
o beijo que não dei
a palavra que não disse
o amor que não tive;
Por que não vens, caminhante, colher minha
primavera e as estrelas sem dono do meu céu?
Vem ao menos uma vez
conhecer o mistério dos abismos
e o segredo de todos os destinos.
E te darei as rosas
e te darei a primavera toda
e te darei a noite"

Rubem Fonseca, Pierrô da Caverna

" Quanto a mim, o que me mantém vivo é o risco iminente da paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo, misericórdia"

Três Máximas do cinema

"A good storyteller is a person who has a good memory and hopes other people haven't."
Irwin S. Cobb

"If you want to be God or a king, therefore, let your head guide you. But should you wish to write for the screen, live by your heart"
Richard Walter

"Polite language makes for polite pictures. And polite pictures violate movie's one inviolate rule: They're boring."
Samuel Goldwyn



segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Biografia


Tenho uma amiga que adora ler biografias. Ela é uma pessoa cultíssima, viajada, interessante, mas larga qualquer coisa por uma biografia. Qualquer uma, de Marianne Faithfull a Sartre, de Jane Fonda a Nelson Rodrigues, se contou a vida e os sentimentos de alguém, ela já leu ou lerá.

Um capítulo à parte tem que ser dedicado a GOD, vulgarmente conhecido como Eric Clapton. Em francês, inglês, português, as autorizadas, não autorizadas e, agora, a recém lançada autobiografia do deus da guitarra, todas já passaram por suas mãos e foram lidas com o interesse de um amor descoberto.

Certa vez, quando ela morava em Paris, ganhou de presente um livro com a biografia de uma modelo brasileira, que se tornava famosa. Leu. O pior é que, alguns dias depois, fui visitá-la e ela disse que eu tinha que ler também. Neguei. Neguei novamente e ainda outra vez. Não perderia meu precioso tempo de passeio em Paris lendo uma bobagem daquelas. Ela venceu, óbvio. Carregou-me para o Jardim de Luxemburgo, onde eu deveria esperá-la por duas horas, aproximadamente, enquanto ela assistia a uma aula na Sorbonne.

Fiquei sentada em uma daquelas cadeirinhas verdes, com o livro dentro de uma revista, morrendo de vergonha, torcendo para não passar nenhum brasileiro perto, que me visse lendo aquilo. Não consegui avançar muito na leitura daquela tarde, meados de primavera em Paris. Olhar ao redor, anotar sensações, era muito mais interessante do que ler aquele relato autobiográfico. Mas não consegui escapar de vez. À noite, enquanto um debate político corria solto na televisão, não me restou muito mais a fazer do que terminar de ler “o livro”.

A paixão dela por biografias alheias sempre me intrigou. Achava estranho que ela ficasse lendo sobre a vida de alguém, tendo ela mesma uma vida movimentada e sendo potencial material para uma biografia.

Outro dia, quando pensava sobre isso, dei-me conta. Ela é de todas as amigas, disparado, a que tem melhor visão da vida. Consegue interpretação sutil para fatos ocorridos com todo mundo, aconselha com sabedoria e, não raro, repete as conclusões dos terapeutas acerca dos mais chegados.

Fala e fala muito, mas ouve melhor ainda. Ela diz que sou desmemoriada, mas é porque não guardo tudo o que ouço. Tem uma capacidade sobre-humana de guardar na memória fatos, diálogos, pessoas, nomes, tudo o aconteceu há trinta anos. Algumas vezes, acho que ela me enrola, por minha lembrança falha, mas, mesmo assim, prefiro acreditar nela.

Acho que essa advogada sairia uma excelente terapeuta. Quem sabe?

MPV - dezembro 2007

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Não me esqueça

...Não me esqueça. – caminhou em direção à porta e foi embora, como ele poderia esquecê-la? Estava marcada em seu corpo, como uma tatuagem eterna, seu cheiro entranhado em seus cabelos, a memória da pele na comunhão dos corpos, como esquecer as últimas horas, os últimos meses, seus encontros e também os desencontros, acontecimentos inesperados que haviam modificado as circunstâncias, não o sentimento. Vamos fazer uma noite de desejos, você deseja e eu faço acontecer, havia começado como uma brincadeira, um chopp inicial, um passeio descompromissado no shopping, a multidão consumista em seu templo de adoração. Na loja de perfumes, escolheram o aroma só deles, quando usado, indicaria a vontade, a disponibilidade, o encontro das almas e consumaria o desejo, vamos jogar boliche, ela venceria fácil o jogo, não porque fosse uma grande jogadora, mas porque ele a deixaria ganhar, somente para ver sua risada, seus gestos de vitória, sua maneira contagiante de viver a vida, existem pessoas que vêem a vida, outros encaram a vida, ela vivia a vida, com intensidade, com desejo, com grandeza, cada momento era único, insubstituível. No boliche, ela venceu as seis partidas, compraram presentes, comeram no japa para comemorar, vamos para a sua casa, sussurrava ele ao seu ouvido e ela sacudia a cabeça em negação, não posso, ele insistia, passava os braços ao redor de sua cintura, descia as mãos por suas pernas, ela cedia, ele a beijava sem pudor do sentimento, ela retribuía, foram para um motel, transformaram a noite de desejos em noite consumada, mãos e corpos entrelaçados, exaustos e suados, o cheiro do sexo, cheiro só deles. Amanhecia, ela se levantou, vestiu suas roupas, acariciou seus cabelos, olhou-o demoradamente, chamou-o de meu menino, pegou as chaves do quarto e disse para ele, guarde-as de lembrança desta noite, não me esqueça...

MPV – dezembro 2007

Herdeiros do Tetra, vale ler!

Não sou muito chegada a uma partida de futebol. Entretanto, em anos mais jovens, perdi a conta de quantas vezes fui ao Maracanã, assistir partidas do Flamengo, do América e do Brasil. Mas isso era antes do xixi na arquibancada e das reformas dos últimos tempos.

Não sou tão velha assim, mas lembro de ir ao Maraca com meus pais e irmão seis anos mais novo, com amigos na adolescência, com outros amigos dos vinte anos. E chegou para mim. De repente, um dia, já não agüentava mais ver, nem ouvir futebol. Cansei.

Com avô jogador do América nos anos 30 e 40 do século passado, com pai, padrinho e irmão fanáticos por qualquer jogo de futebol, (meu irmão, quando adolescente, adormecia com o rádio ligado em algum jogo que estivesse sendo narrado, fosse da quinta divisão – existe? no nordeste brasileiro. Quem pode adormecer ouvindo narração de futebol pelo rádio??) eu nasci e cresci em uma família que transpirava o amor pelo esporte.

Depois dos meus anos de Maracanã, e de tanta paixão familiar, resolvi ser a ovelha negra, só para contrariar, e não assisto a nenhum jogo, não leio resultados, por mim, a tv à cabo viria sem os canais de futebol (chamá-los de canais de esporte é um exagero, concordam? Só passa futebol, só se fala em futebol...). Quando quero implicar com meu pai e irmão, digo que, em minha casa, a televisão apaga quando começa a passar jogo de futebol, seja em que canal for.

Toda essa longa introdução é para falar de um texto – na realidade uma tese – que li, ontem, abordando o tema futebol e os projetos sociais mantidos por atuais e ex-jogadores do esporte.

A tese “Herdeiros do Tetra”, escrita por Cezar Marques, (no endereço http://www.cpdoc.fgv.br/cursos/bensculturais/teses/CPDOC2006CezarAugustoLago.pdf) me fez lembrar a paixão negada e adormecida há tantos anos.

Primorosamente escrita, apaixonadamente escrita, seriamente escrita, a tese transformou-se em um texto para ser lido com prazer, seja pelo seu conteúdo histórico, sua bibliografia invejável, pelo conhecimento que nos proporciona dos projetos sociais desenvolvidos, pelos agradecimentos emocionados que o autor faz no início do projeto.

É para ser lido por quem gosta de futebol, pelos que gostam de história, pelos que gostam de uma estória bem contada, ou simplesmente pelos que sentem paixão pela vida.

Ah! Não esqueçam de ler o agradecimento que ele faz à sua mulher, Raquel, logo no início. É lindo e de derreter corações.

MPV - dezembro 2007

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Paul McCartney, This never happened before

I'm very sure
This never happened to me before
I met you and now i'm sure
This never happened before

Now i see
This is the way it's supposed to be
I met you and now i see
This is the way it should be

This is the way it should be for lovers
They shouldn't go it alone
It's not so good when you're on your own

So come to me
Now we can be what we wanna be
I love you and now i see
This is the way it should be

This is the way it should be

This is the way it should be for lovers
They shouldn't go it alone
It's not so good when you're on your own

I'm very sure
This never happened to me before
I met you and now i'm sure
This never happened before (this never happened before)
This never happened before (this never happened)
This never happened before (this never happened before)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Thiago de Mello, Sugestão

Antes que venham ventos e te levem
do peito o amor — este tão belo amor,
que deu grandeza e graça à tua vida —,
faze dele, agora, enquanto é tempo,
uma cidade eterna — e nela habita.

Uma cidade, sim. Edificada
nas nuvens, não — no chão por onde vais,
e alicerçada, fundo, nos teus dias,
de jeito assim que dentro dela caiba
o mundo inteiro: as árvores, as crianças,
o mar e o sol, a noite e os passarinhos,
e sobretudo caibas tu, inteiro:
o que te suja, o que te transfigura,
teus pecados mortais, tuas bravuras,
tudo afinal o que te faz viver
e mais o tudo que, vivendo, fazes.

Ventos do mundo sopram; quando sopram,
ai, vão varrendo, vão, vão carregando
e desfazendo tudo o que de humano
existe erguido e porventura grande,
mas frágil, mas finito como as dores,
porque ainda não ficando — qual bandeira
feita de sangue, sonho, barro e cântico —
no próprio coração da eternidade.
Pois de cântico e barro, sonho e sangue,
faze de teu amor uma cidade,
agora, enquanto é tempo.

Uma cidade
onde possas cantar quando o teu peito
parecer, a ti mesmo, ermo de cânticos;
onde posssas brincar sempre que as praças
que percorrias, dono de inocências,
já se mostrarem murchas, de gangorras
recobertas de musgo, ou quando as relvas
da vida, outrora suaves a teus pés,
brandas e verdes já não se vergarem
à brisa das manhãs.

Uma cidade
onde possas achar, rútila e doce,
a aurora que na treva dissipaste;
onde possas andar como uma criança
indiferente a rumos: os caminhos,
gêmeos todos ali, te levarão
a uma aventura só — macia, mansa —
e hás de ser sempre um homem caminhando
ao encontro da amada, a já bem-vinda
mas, porque amada, segue a cada instante
chegando — como noiva para as bodas.

Dono do amor, és servo. Pois é dele
que o teu destino flui, doce de mando:
A menos que este amor, conquanto grande,
seja incompleto. Falte-lhe talvez
um espaço, em teu chão, para cravar
os fundos alicerces da cidade.
Ai de um amor assim, vergado ao vínculo
de tão amargo fado: o de albatroz
nascido para inaugurar caminhos
no campo azul do céu e que, entretanto,
no momento de alçar-se para a viagem,
descobre, com terror, que não tem asas.

Ai de um pássaro assim, tão malfadado
a dissipar no campo exíguo e escuro
onde residem répteis: o que trouxe
no bico e na alma — para dar ao céu.

É tempo. Faze
tua cidade eterna, e nela habita:
antes que venham ventos, e te levem
que dá grandeza e graça à tua vida.

Partida






Passados alguns dias de sua partida, encontro-me pensativa, cismando pelos cantos, tentando entender algumas coisas e arrumar o que ficou após a sua passagem pela minha vida. Pela terceira vez, você chegou e bagunçou a ordem dos meus dias, tirou tudo do lugar, como um vendaval não previsto que leva tudo pelos ares.

Voltar a sentir essa emoção, após alguns anos, foi como receber um presente que eu já não acreditava possível e isso fez com que todas as minhas defesas se reunissem para me salvar da invasão inimiga. Com isso, o que era para ter sido doce, foi arredio, o que era para ter sido fácil, foi confuso e o que era para ser entrega, ficou escondido dentro de mim.

A razão subjugou a emoção, me impedindo de enxergar o que se passava, enquanto você estava aqui, e me impedindo de “colher o dia”, como diz o poeta, e só agora vejo que o que é para ser profundo, será, independente do nosso esforço contrário, voluntário, ou não.

No caminho do aeroporto, comecei a entender o que sentia e porque tinha agido de maneira quase superficial durante a semana que passamos juntos. O medo do sentimento havia me bloqueado e ainda agora, faço um esforço para conseguir reunir em um pensamento conexo, essa tempestade mental que me assola. E se está sendo difícil escrever, o que normalmente é muito fácil para mim, imagino que seria impossível entender meu desabafo verbal. Eu-racional, vivida, com 35 anos e alguma história está em guerra declarada contra a Eu-apaixonada, que sente as coisas profundamente e faz a vida valer a pena.

Mesmo assim, é a mistura das duas que escreve, para falar o que tinha que ter sido feito, já que você, com o seu jeito amoroso, seu sorriso e seu carinho, mais uma vez, modificou meu caminho e fez minha vida brilhar.

Você está e estará sempre, em minhas lembranças, em minha vida e em meu coração, eternizado em meu sentimento e guardado como o Bem precioso que é.

MPV - setembro1998

Fernando Pessoa, Cancioneiro

Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E da ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.

Fernando Pessoa
Cancioneiro

Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio

“Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...”


Fernando Pessoa
Ficções do Interlúdio
Poesias de Álvaro de Campos


OBS: Para quem não sabe, Álvaro de Campos é um dos heterônimos de Fernando Pessoa que, ao longo da vida, escreveu sua obra como o próprio Pesssoa, Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e outros. Isso é o que chamo de uma Pessoa Múltipla, sem intenção de trocadilhos.

Esse trecho da poesia sem nome, escrita em 1934, tornou-se, há alguns anos, parte da minha filosofia de vida, tem me guiado, me inspirado, confortado e incentivado, faz com que eu não me perca no emaranhado de emoções que busco e sinto, além de me lembrar, constantemente, que a vida emocionada é o que realmente encanta.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

No aeroporto

Ela dançava, na noite, com amigos, como se não houvesse amanhã. Mandava embora, definitivamente, o ranço e a tristeza dos últimos tempos. Ela dançava, com amigos, animada, quando ele surgiu, lindo, imponente, levou-a pela noite e a fez acreditar novamente no amanhã.

Ela trabalhava, dias depois, quando soube que os braços encantados partiriam para rumo longe. Desceu dez andares de escada, acelerou o carro, desviou de buracos e radares, chegou ao aeroporto e não conseguiu passar pela área proibida. Esperava do lado de fora, uma autorização especial, um pistolão conhecido e os minutos corriam. Ela esperava. Os minutos corriam.

Ela, finalmente, conseguiu entrar e acelerou o passo, mas o embarque já havia iniciado. Esperava a porta do avião fechar. “Oi, moça, o que fazes aqui? Como conseguistes entrar?” Mágica, respondeu ela. E se deixou envolver no abraço que primeiro tirou seu fôlego e depois, trouxe, de volta, seu ânimo renovado para o primeiro dia do resto de sua vida.

MPV – agosto, 1997