domingo, 28 de dezembro de 2008

Escondidinha

Vôo 1954, com destino a Porto Alegre, reunião parcial de família, de 25 de dezembro à primeira semana de janeiro do ano que já bate à porta. Assim que o 737-800 alcança sua altitude de cruzeiro, pego o MP3 player emprestado do meu irmão, com minhas músicas preferidas, as que meu sobrinho chama carinhosamente de "bandas velhas", Elton, Eric, Beatles, Rolling, Sheryl (não tão velha assim), começo a ouvir, fecho os olhos e vou, lentamente, saindo do meu corpo sentado na desconfortável poltrona 5B, subo para o compartimento de bagagem de mão e me escondo lá dentro. Dou uma última olhada e meu corpo continua na mesma posição, só meu espírito inquieto escapou da prisão para explorar as dependências da caixinha voadora. Passeio através das fileiras, observando os outros passageiros, cada um com suas manias e maneiras de enfrentar um vôo de menos de duas horas, um cutuca o nariz, não sei onde irá aquela meleca; outro faz palavras cruzadas, enquanto murmura as respostas; uma jovem adormecida, encosta a cabeça no ombro do vizinho que a olha de soslaio; um bebê chora baixinho, deve estar com dor de ouvido; uma criança fala a palavra "pára" sem parar, irritando todos ao redor; uma senhora bem bonita folheia displicentemente as páginas de uma revista bacana; um casal discute a relação, não sei se a deles ou de ausentes; a velhinha com terço na mão acredita que haverá salvação se todos cairmos no mar; um adolescente com cara de quem não toma banho há três dias, cutuca as unhas negras que não ficarão limpas nem com muito sabão e escovinha. Pessoas múltiplas convivem um tempo obrigatório para chegarem ao seu destino.
Após 90 minutos, o Comandante avisa que aterrissaremos em instantes no aeroporto Salgado Filho e retorno ao meu corpo, desligo a música, coloco o assento na posição correta, aguardo o pouso cada vez mais torto (antigamente os pilotos tinham mais habilidade, mas pelo visto, esses voaram para fora do país e das companhias brasileiras) e piso, pela terceira vez no ano, na cidade que guarda parte saudosa de mim mesma com minha família.

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Provavelmente última postagem de 2008, com todos os acentos intactos. Freqüentemente, ano que vem, terei que consultar oráculos não para saber a sorte do dia, mas para confirmar se aquele hífen ainda existe, se o acento caiu, se os "esses" dobraram, só o trema será uma unanimidade. Ai que pena! Eu gostava tanto das regras antigas! Meu próximo vôo será um voo faltando um pedaço.

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Pela ordem: Para 2009: Saúde, Paz, Amor, Sucesso e Prosperidade!

MPV - dezembro 2008

domingo, 21 de dezembro de 2008

Conversa entre mãe e filha

CONVERSA VERÍDICA ENTRE MÃE E FILHA DE QUASE QUATRO ANOS, SOBRE O NAMORADO OFICIAL DA MENINA (NAMORADO OFICIAL É PORQUE TANTO ELA, QUANTO ELE SE APRESENTAM A TODOS COMO UM CASAL. ELE AINDA VAI FAZER QUATRO ANOS TAMBÉM).


MÃE (desligando o telefone com a mãe do Carlos*, após combinação):
Carolina*, vamos nos arrumar logo porque o Carlos tá no banho e logo vai passar aqui.

CAROLINA:
O Carlos tá no banho? Isso quer dizer que o pinto dele tá molhado?

MÃE (surpresa):
Como assim, Carolina? Isso quer dizer que o corpo todo dele tá molhado, ele tá no banho!

CAROLINA (não satisfeita):
Mas o pinto dele tá molhado?

MÃE:
Tá molhado, filha. Vamos acabar de nos arrumar, porque papai também tá se arrumando para sair?

CAROLINA (resignada):
Tá.


PASSAM-SE ALGUNS MINUTOS, MÃE E FILHA ACABAM DE SE ARRUMAR E SENTAM-SE NA SALA. O PAI DESPEDE-SE DELAS E SAI.


CAROLINA:
Mãe, agora que o papai saiu a gente pode falar sobre o pinto do Carlos?

MÃE (novamente surpresa):
Carolina, o que mais você quer saber sobre esse assunto?

CAROLINA:
Mãe, será que o pinto do Carlos já tá seco?


* Nomes fictícios

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Desejos para 2009

“É preciso amor pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso chuva para florir”
Almir Sater/ Renato Teixeira

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Verão? Que Verão?

Quase Natal. Verão no calendário do Rio de Janeiro. Só no calendário. Turistas branquelos como eu andando pelas ruas da cidade com moletons amarrados na cintura! Desde domingo, para sair de casa, carrego guarda-chuva na bolsa e visto casaco de couro. Não chega a ser lã, é certo, mas é um casaco, no mês fervilhante, na estação do inferno. Ontem esqueci o guarda-chuva em casa e só me dei conta na rua. Tive que andar uns três quarteirões até encontrar um camelô vendendo o dito que dura, no máximo, cinco chuvas de menor potência e sem vento.

Normalmente, em outros anos, estaríamos todos resfriados de tanto entrar em ambientes congelantes por causa do ar-refrigerado regulado em temperatura de inverno nórdico e sair para a rua e encarar um calor trópico-africano. E as praias pululando de gente rosada e/ou torrada.

Não dá para acreditar nesse clima. Ainda bem que vou para Zurich e já me disseram que a praia lá tá ótima.

MPV - dezembro 2008

Shee no FRio de Janeiro


Árvore de Natal

Outra noite, voltando para casa, comecei a reparar nos edifícios pelos quais passava, todos, todos, com as portarias piscando pelas luzes penduradas nas árvores de Natal dos condomínios. Todas acesas! Cada uma em seu formato, umas feias, outras horrorosas, outras ainda com neve artificial mostrando o clima atual do Rio e o mau gosto dos síndicos, ou dos decoradores oficiais de portarias.

Cheguei em casa e descobri que a portaria de meu prédio não tem decoração de Natal! Não tem árvore, papai noel, enfeite, nem cores vermelha e verde, nada. Resolvi subir ao último andar, descer pelas escadas e vi que nenhuma porta tem guirlanda, flâmula de Boas Festas, nada, nada, nada. Levei um susto. Roubaram o Natal do meu edifício! Acho que por lá, o calendário pula de 23 de dezembro para 2 de janeiro.

Não... tem alguma coisa errada... eu vi uma “caixinha” de Natal na mesa da portaria... De qualquer jeito, pedi uma cópia do estatuto do condomínio para saber se, pelo menos, a gente pode desejar Feliz Natal a quem encontrar pelos corredores.

MPV - dezembro 2008

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Receita magra

Agora que chegou o período em que a gente bebe até cair e come até explodir, Mammy Magg resolveu inventar uma receita que limpa tudo, limpa organismo, limpa gorduras localizadas, limpa chão de cozinha, alimenta, só faz bem e não é nescau.

É um suco super-poderoso, a gente bate tudo no liquidificador, bebe dois copos enooormes pela manhã e fecha os olhos quando passar em frente aos bolos, chocolates, empadinhas e lingüicinhas.

Ele leva, obrigatoriamente, cinco ingredientes: aipo (as folhas entram!), curcuma (ah...vão descobrir o que é, do mesmo jeito que eu...), alecrim, gengibre, limão - tudo fresco! Nada enlatado ou desidratado.

E mais o que cada um gostar: salsa, manjericão, hortelã, mamão, melão, melancia, maçã, outras frutas magras, maaaaaagras, de acordo com a preferência (banana está banida do suco). As quantidades são no olho, também de acordo com o paladar.

Acrescente bastante água e bata tudo no liquidificador. O meu, hoje, fiz com os ingredientes obrigatórios, mais tomate, cenoura e maçã. Ficou uma gororoba de cor indefinível e deliciosa.

Bebido o suco, será que quer dizer que tenho que fingir não ver, quando abrir a geladeira e der de cara com o salaminho, o queijo brie, o vinho, as queijadinhas portuguesas?

MPV - dezembro 2008

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

As quatro Guerreiras

Ink, Mammy, Pellyz e Channy, as quatro guerreiras

Se Lipo estava assim...


Se Lipo, ao fim da festa, estava assim, imagina o resto...

Crônica do Coração Imperioso - Adriana


Minha amiga Adriana, Dida, Ink, como quer que a chamem, escreveu esse texto para a nossa festa de fim de ano. Cada um deveria levar, além de muita bebida, um texto que lhe falasse ao coração e esse foi o dela. Não só fala ao coração, como fala de seu coração, insubordinado, levado, traiçoeiro e gaiato. Linda amiga, grande coração.

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Meu coração, este insubordinado, pede, antes de tudo, que perdoe sua indiscrição, mas avisa que nada pode fazer, já que esta é sua natureza - e isto eu posso provar que é verdade: acelera na hora errada, me faz sufocar e perder o chão, e quando mais preciso, subverte as leis mais naturais!

Mas, por força de sua posição de liderança que, de uma forma ou de outra, acaba exercendo, me convenceu a dar um aviso que insiste em grudar nas paredes, muros, rios, montanhas, e até nos labirintos de todo o meu ser e, ainda agora, tarde da noite, resolveu repetir a mesma música mil e uma vezes lá dentro dele como último recurso pra me fazer falar!

Por isso, também eu peço desculpas, pois não consegui governar este “negócio” aqui no meu peito, e também pela falta completa de explicação razoável....... Assim é este meu coração: quer porque quer, e não importa o tempo, os compromissos, e toda a vida ordinária, porque seu querer reveste tudo de uma urgência muito urgente mesmo!

Enfim, meu coração exige a sua presença e, petulante, também um beijo demorado – e ele acha que é pouco!

Mais uma vez, peço, encarecidamente, que perdoe minha ingerência, e espero que compreenda que nada pude fazer para calar a voz de tão insubordinado habitante!

Despedimo-nos, eu e meu coração, esperando sua resposta a tão estranha cartinha.

Adriana de Broux.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Graves cartas grávidas do exílio

Sempre escrevi cartas. Sempre gostei de lê-las, as minhas, as respostas às minhas, as dos outros – quando permitido, claro – as respostas às dos outros. Sempre escrevi cartas, repletas de saudades, muita curiosidade, com alguma expectativa, prenhes de perguntas. Perguntas para mim mesma, perguntas para os destinatários, perguntas objetivas, perguntas sem resposta.

Sempre gostei de cartas, Paul Eluard a Gala, Fernando Pessoa para vários, Rodolfo Konder para meus pais, Mario de Andrade para Fernando Sabino, correspondências entre Fernando Sabino e Clarice Lispector, Hannah Arendt e Mary McCarthy, Rainer Maria Rilke e Franz Kappus, minha irmã e eu, extratos de vida descritos em pequenos pedaços de papel.

Quando me exilei voluntariamente em Lisboa, nos anos 90, escrevi caminhões de cartas para minha família, depois catalogadas por ordem cronológica e hoje são uma perfeita fotografia daquele período. Nada melhor do que reler uma carta para sentir novamente o gosto, o cheiro, rever o lugar ou situação descrita, o aperto no coração, a sensação de alegria, o que quer que tenha motivado a escrita da missiva. Em alguns momentos, cartas graves, em outros, alegres, em muitos, breves.

No curto espaço de tempo entre o correio a galope e a mensagem instantânea, existiu o correio eletrônico e desse tempo, não tão longe assim, também guardo, em papel impresso, as cartas trocadas por esse meio, com amigos e amores. Elas têm o seu valor, claro, mas nada que substitua a surpresa de pegar o envelope embaixo da porta ao entrar em casa, após um dia exaustivo de trabalho e calor, olhar o remetente, observar o selo ou carimbo, a data e o local da postagem, calcular quanto tempo levou para chegar.

Ai, cartas! Empoeiradas graves cartas grávidas do exílio que me fazem fungar e espirrar agora.


MPV – dezembro 2008


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Dois trechos de cartas que eu gostaria de ter escrito:


Carta de Fernando Sabino para Clarice Lispector - Nova York, 10 de junho de 1946

“Tenho feito descobertas importantes, por exemplo: o pecado é simplesmente tudo o que Cristo não fez. Tenho conhecido sujeitos famosos, por exemplo: Duke Ellington. Tenho tido muita saudade de minha filha. Tenho tido muito pouco dinheiro. Tenho tido muitas oportunidades de ficar calado. Tenho tido muita decepção com os Correios. Tenho tido cansaço, saudade e calma. Tenho bebido muito, muito, muito. Tenho lido os suplementos dominicais. Tenho tido vontade de voltar. Tenho escrito muitas cartas para você. Tenho dormido muito pouco. Tenho xingado muito o Getúlio. Tenho tido muito medo de morrer. Tenho faltado muita missa aos domingos. Tenho tido muita pena de Helena ter se casado comigo. Tenho tido dor de dente. Tenho certeza que não volto mais. Tenho contado muito nos dedos. Tenho franzido muito o sobrolho. Tenho falado muito com os meus botões. Tenho tido muita vontade de brincar. Tenho feito muitas manifestações de apreço ao Senhor Diretor. Clarice, estou perdido no meio de tantos particípios passados.”


Carta de Fernando Sabino para Clarice Lispector - Nova York, 6 de julho de 1946

“Viver devagar é que é bom, e entreviver-se, amando, desejando e sofrendo, avançando e recuando, tirando das coisas ao redor uma íntima compensação, recriando em si mesmo a reserva dos outros e vivendo em uníssono. Isso é que é viver, e viver afinal é questão de paciência.”

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Rio, 40 Graus


Cópia restaurada de Rio 40 Graus, do cineasta Nelson Pereira do Santos, marco do cinema nacional, em breve em dvds, perfeita descrição de uma sociedade cuja essência permanece a mesma 53 anos após retratada no filme, cotidiano atual agravado pelos problemas crescentes e violência sem limites. Como se mantêm as mazelas retratadas na trama envolvente, com diálogos ágeis. Primeira vez que assisti à película na tela grande, no escurinho do cinema, com orgulho pela obra-prima, certo amargor por não ver luz no fim do túnel para a nossa cidade cada vez mais carente e mais difícil de administrar.

Quem nunca viu, veja. É ordem, daquelas coisas que não se pode deixar de fazer na vida. Quem já viu, repita a dose. Não cansa nunca e tem sempre algo mais a descobrir.
Foto: Cartaz do filme

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Vários

Hoje tem abertura da mostra Retrospectiva Nelson Pereira dos Santos na ABL. Eu vou.


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Árvore da Lagoa inaugurada, acabou o ano, piorou o trânsito.

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Este ano, vai ter Natal em família, o que não acontece há muito tempo.... Encontro planejado, festa, menu e música, filme produzido, malas por fazer... Todos contamos os dias...

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Livro Degraus no forno. Sai até semana que vem.

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Que notícia maravilhosa! Zizou vai ser papai. Suas namoradas cresceram e já podem procriar, mas... qual das duas estará grávida? Dália ou Dominique? Ou as duas? Vou descobrir... Mamãe disse que, então, eu vou ser vovó! ha ha ha! Imagina como serão lindinhos os filhotes!

Na verdade, soube agora, nenhuma está grávida ainda, mas estarão no próximo mês. As duas, juntas. Zizou vai honrar a família com a jornada dupla! ha ha ha!












domingo, 30 de novembro de 2008

Casquinhas

Arranquei todas as casquinhas no fim-de-semana. Uma a uma puxei com a ponta da unha, deixei sangrar até chorar. Em pouco tempo a mistura de sangue e lágrimas formaram uma poça em meu coração. As pequenas feridas ficaram abertas e agora parece mais uma massa disforme em carne viva. Olhei, vi, ouvi, respirei e comecei a enrolar a massa em bandagens finas para recuperação.

MPV - novembro, 2008

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Premonição

Terás muitos outros, antes e depois, mas ele é quem terás amado por mais tempo, mais profundamente, porém, na superfície de seus olhos. Ele terá entendido tua alma mais e menos que todos, terá estendido as mãos todas as vezes que necessitares, mas, aí, dormirá a ruína de ambos. Ele será o teu compromisso e tua ausência, teu passado, teu desejo e a falta dele, tua senha, teu amigo, teu amante, teu distante. Ele te dará uma família que não é tua, mas que adotastes, e tudo farás para mantê-la. Todos os momentos em que te sentires perdida, lembrarás de sua firmeza, lamentarás sua fraqueza, lembrarás de seu abraço, lamentarás não tê-lo sempre. Sorrirás, porque sabes que, onde quer que estejas, ele existe, ele foi, ele será. Para sempre.

MPV - novembro, 2008

Ida e Volta

Na ida, mormaço na praça da Paz, um casal muito, muito, muito velhinho, sentado no banco de jardim, os dois de cabelos totalmente brancos, mãos dadas no colo dela, conversavam baixinho segredos de vida inteira. Podiam ser casados, amigos, amantes, ou tudo ao mesmo tempo.

Na volta, chuva forte na praça da Paz, o banco vazio e molhado, ninguém à vista, nem mãos dadas, ou abrigadas, aninhadas onde quer que estivessem. Para onde foram os dois?

domingo, 23 de novembro de 2008

Talk to me

Ele, de joelhos no meio da sala, gritou: "talk to me!", enquanto ela, dentro de si mesma, virou o rosto. Não tinha condições de falar nada, não queria ouvir, queria desaparecer na vida, na multidão, na cidade, no mundo. Desaparecer sem dar explicações. Desaparecer. Marcou o dia da partida e começou a arrumar as malas.

A cena toda era patética, ele segurava a cabeça com as mãos e soluçava, sem forças. Telefonava para amigos, visitava a família, andava à esmo pela areia da praia, voltava ao anoitecer. Já conhecera a insegurança, passara pelo desespero, pela argumentação, encontrara o imperioso silêncio em que ela se fechara.

No último dia, ele saiu cedo de casa, deixou a aliança na mesinha e a passagem na cômoda. Quando ela chegou mais tarde, viu primeiro a passagem. Segurou-a por longo tempo e deixou-a no mesmo lugar. Viu a aliança na mesa e soube que era tarde para falar.

MPV - novembro, 2008

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Zumbi

Feriado no Rio, sol, céu, mar. Ruas cheias, estradas cheias, mercados cheios. Quem saiu ainda não voltou, quem chegou está por aqui, quem ficou descansou depois da praia.

Ontem, feriado no Rio, sol, céu, mar, fiquei com a velha frase de Hermann Hesse ecoando em meus ouvidos "...Podemos compreender uns aos outros. Mas só cada um de nós sabe o sentido de si mesmo.”

Hoje, continuação do feriado no Rio, sol, céu, mar, eu reescreveria a frase da seguinte forma: "Não conseguimos compreeender uns aos outros se não sabemos o sentido de nós mesmos."

Então, feriado no Rio, sol, céu, mar, a ordem é encontrar o sentido de si mesmo, tentar compreender uns aos outros e dar um mergulho, por que ninguém é de ferro...

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Lançamento

- Oiiiii! Cheguei cedo?
- Chegou! hahaha! É só semana que vem!
- Não acredito! Errei de terça!
- Peraí, deixa eu ligar para a Mary.
- Vem jantar aqui conosco! A gente tem que tratar bem, para voltar semana que vem, hahaha!

São mesmo os melhores momentos. Os enganos que transformamos em magia. Somos amigas há vinte e seis anos, é... voa... e o jantar foi maravilhoso, vinho, risos, causos e boa companhia. Semana que vem eu volto, Lucas vai lançar "Retorno ao Oriente", pela editora 7Letras.

Big Yellow Taxi

"Don't it always seem to go
That you don't know what you got till it's gone
They paved paradise and put up a parkin' lot"

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Após a tempestade

Após a tempestade vem... o dia de sol rachando, mar revolto e língua negra na areia, areia espalhada por todas as pistas, bueiros vomitando excessos da tarde anterior, carros enguiçados pelas calçadas, gente gripada e gente animada, fotos alagadas nos jornais pontuais.

Após a tempestade vem o hoje, vem hoje, vem o dia lindo de hoje, como se ontem não houvesse.
Um dia saberás...

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Temporal

Após um fim-de-semana de sol e praia, caiu o mundo, chuva, lama, teto de apartamento, água, muita água e todo mundo com o pé na poça.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O sorriso é o que importa

- O Sorriso é o que importa! disse-me Paulo, responsável pela barraca na areia de Copacabana, em frente à Hilário de Gouveia.

Depois da caminhada matinal, resolvi espiar o mar de perto, bem gelado àquela hora e Paulo se aproximou oferecendo uma cadeira. Agradeci, e falei que só queria dar um mergulho, perguntei se ele poderia olhar meus pertences e ele disse para eu colocá-los na barraca, ficava mais seguro.

Deixei tudo lá e me joguei naquele mar de correnteza forte, mergulhei e me embrulhei em ondas, até cansar e resolver sair. De volta à barraca, em pé, esperei secar, enquanto ouvia causos contados por Paulo. Eram estórias curiosas, engraçadas, sobre frequentadores, turistas torrados e outras gentes. Falou que era bom fisionomista, não esquecia cliente e bom com os números também, guarda tudo na cabeça. Ele contava e sorria mais que tudo. Quando me despedi e sorri de volta, ele disse: "O sorriso é o que importa!"

Amanhã, se não chover, voltarei.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Fernando Pessoa, A Felicidade exige valentia

"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes mas, não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo, e posso evitar que ela vá à falência.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.

É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma.

É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um "não". É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?

Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."

Concentração

Ai, como tá difícil me concentrar hoje... Começo oito coisas ao mesmo tempo e não consigo terminar nenhuma. Se tivesse sol, eu ia à praia.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Textos sumidos

Textos publicados aqui desaparecem misteriosamente no meio da madrugada. Dirigem-se sorrateiramente para páginas impressas.

domingo, 9 de novembro de 2008

Cinema

Lágrimas e mais lágrimas em um filme bacana. Qual? Não digo. Tristeza não tem fim? Tem... Só não sei quando acaba...

Alma

"Mas é doce morrer nesse mar de lembrar
E nunca esquecer
Se eu tivesse mais alma pra dar
Eu daria, isso pra mim é viver."

Linha do Equador
Djavan e Caetano Veloso

Almoço 80

Espumante, espumante, espumante, água pra hidratar; salame italiano, bacalhau feito pelo anfitrião, polenta cortada na linha; risos; a dona da voz no cd, a dona da voz no almoço; foto posada, foto armada, foto-fofoca; risos; espumante, espumante, coca-cola; música anos 70, misturada a Cartola; vermelho no rosto pelo calor e o sol, que sol! o sol se pôs; risos; começa tudo de novo, espumante, coca-cola. Espumante, bacalhau, risos. Por que fui embora mesmo? Ah... a pilha duracell acabou...

sábado, 8 de novembro de 2008

Maresia

Eu cheguei em casa agora, janelas abertas do apê em Copa, cheiro total de maresia. Forte, irresistível aroma, perfume, cheiro de mar. Ai, mar! Outras eras fossem, outro momento, vestia meu biquini e dava um mergulho nas ondas que chamam. Elas chamam. Com esse cheiro maravilhoso, o mar chama. Exige minha presença, povoará meus sonhos por que estou aqui em cima, no décimo andar, louca para um mergulho. Ficará para depois.

Tá bom... Dídi, diferente do que pensei, adorou os óculos, apesar de reclamar que só viu metade.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Óculos novos na parada

Óculos novos na parada, digo, no meu rosto. Agora enxergo tudo e mais. Enxergo até o que não quero ver. "Óculos" do ofício...

Minha mãe achou chiquérrimo! (foi ela quem escolheu, eu não sei escolher óculos), minha prima vai achar horroroso, como acha todos, eu estou adorando.

Eles são mais leves, mais fortes, anti-reflexo, agora não vai cansar tanto ficar muitas horas em frente a esse devorador de almas, chamado lepitopi. Ou, como a outra prima prefere chamar, nótibuqui.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Chuva

Fim da tarde, bunda quadrada, sentada em frente ao computador, chuva forte, de verão antecipado no Rio, lava tudo. Lava calçada e carro, lava árvore com sede, lava gente desprevenida, lava dor, lava a alma, lava o espírito carregado.

Fim da tarde, sentada em frente ao computador, chuva pára, fio de sol aparece no horizonte, sobre o concreto dos edifícios, ilumina. Ilumina calçada e carro, ilumina árvore satisfeita, ilumina gente molhada, ilumina dor, alma e espírito carregado.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Distância menor

A distância encurta a cada dia. Passos longos, vigorosos e mais rápidos me levam ao destino e retorno triunfante.

Hoje teve bônus: O sol, tímido, deixava um rastro de luz e, na esquina de casa, olhei para o mar e ele me chamou. Tirei tênis e meia, camiseta e short, mergulhei, furei suas ondas, voltei a ser criança.

Fonte de energia vital, o mar e suas profundezas me fizeram renovar. Voltei para casa pingando e feliz.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

O Jornal nas bancas

Hoje contei: Eram oito pessoas na lateral da banca, lendo as primeiras páginas de jornais pendurados, do lado esquerdo, só esportes, do lado direito, assuntos variados. Como num cinema, enfileirados, olhavam figuras sangrentas e fotos de times e liam notícias escritas no dia anterior.

Dia Nublado

Atenção a todos! Dia nublado no Rio não é sinônimo de frio. Quem for caminhar no calçadão, use a mesma roupa de sol escaldante, ou seja, nenhuma, por que o sol pode não brilhar no mar, mas está lá, para torrar os bobos que saíram de casa agasalhados.

Vi gente vestindo moletom com capuz e fiquei com pena. Os habituais, os turistas e eu sabíamos o que encontraríamos na caminhada.

No Rio, não há inverno e no período de setembro de um ano a maio do outro, ou seja, exceto os três meses de temperatura amena, dispam-se todos ou torrem no calor!

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Uma coisa inesperada

Até os meus vinte anos, minha vida foi programada, e parcialmente vivida, de acordo com a expectativa genética de meus antecessores. A partir de lá, tudo mudou, nada mais do vivido estava no roteiro original. Posso bem dizer que cansei de me surpreender comigo mesma e minha infinita capacidade de mudar de idéia acerca de tudo. Se eu mesma me surpreendia com minhas atitudes, o que dirão os outros que nunca estiveram dentro de minha cabeça e nem partilharam de meu espírito livre.

Casei, descasei, mudei, voltei, reatei, mudei, busquei, estudei, formei, mudei, enjoei, criei laços indissolúveis e dissolvi laços inúteis, mudei. Na realidade, para mim, tudo isso foi e tem sido vida. Poucos arrependimentos, poucas lágrimas e muitos momentos aos quais dou o nome de Conjunto da Obra, minha vida escolhida e roteirizada por mim, divertida para mim.

Agora, mais uma vez, sorrio, me surpreendo comigo mesma, por uma coisa inesperada. E ouço ecoar repetidamente o refrão de Gil, “Hoje eu me sinto / como se ter ido fosse necessário para voltar / tanto mais vivo / de vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá”.

MPV – Outubro 2008

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Everlasting Love

Você chegou em um sábado, no mês de outubro, era dia 19. A primeira vez que o vi, através de um vidro instransponível, você esperneava com miúdas pernas, em cima de uma mesa, onde enfiavam um tubo por sua garganta para tirar o sangue acumulado em sua barriga. Foi amor à primeira vista.

Depois colocaram uma roupa branca e delicada em você e sapatos de crochê vermelhos, para dar sorte. Tinha uma carinha meio amassada, mas, a meus olhos, parecia e era um príncipe.

Seu primeiro Natal foi uma noite quente, exaustivamente quente, sua roupa empapada de suor foi colocada à parte e você dormiu com pouco cabelo grudado à testa.

O susto que nos deu com uma febre em acelerada ascensão, ficou marcada em minha memória. Era véspera do meu aniversário, eu vinha direto da praia e passei para vê-lo. Acabamos no hospital, onde após o desespero do desconhecido, e tudo ter ficado bem, cedi ao choro convulsivo. No dia seguinte, meu presente foi passar o dia com você, engatinhando e rindo e brincando como se nada tivesse acontecido na noite anterior.

Quando retornei de uma viagem, você engatinhou em minha direção na velocidade de um raio, sorridente, com poucos dentes, e consegui tirar uma foto antes de você alcançar seu objetivo, que era o meu colo, na cama.

Já muitos anos se passaram, após aquele nosso primeiro encontro, nossa primeira foto, você em meus braços e eu dizendo baixinho ao seu ouvido: “não chore no meu colo, por favor, não chore”.

Hoje, chamo por você quando você passa, e digo que tenho um segredo importantíssimo para falar em seu ouvido. Você se aproxima, relutante já pela idade, e eu falo: “eu te amo”. E você, na maioria das vezes, responde um “eu também” de forma encabulada e escapativa.

Já basta para encher meu coração de um amor sem fim, sem cobranças, sem julgamentos. Você é o meu everlasting love, que durará para sempre, aqui, lá e em qualquer lugar, juntos, perto, separados pela distância, no dia-a-dia, em todos os momentos.

MPV – setembro 2008

domingo, 28 de setembro de 2008

As três metarmofoses

Foi numa tarde de 31 de dezembro, há dezoito anos atrás, que fui intimada a ler o texto de Niezstche, Das Três Metarmofoses. Tinha que ser uma tradução específica de uma determinada editora, para que eu pudesse apreender em nossa língua, o que havia sido escrito no original alemão.

No texto, descritos, os espíritos livres e o camelo, o leão e a criança. O camelo, o espírito que suporta todos os fardos; o leão, o espírito conquistador e libertário; a criança, o espírito da inocência e do novo começo.

Esse texto me acompanha desde então. Me assombra, me conduz, me guia e me ampara a cada nova fase de minha vida, mês após mês, dia após dia. Às vezes, ele permanece escondido no livro, outras, quando menos espero, pula em meu colo, ainda outras, quando procuro outro texto, meus olhos se fixam nele.

Suportar os fardos, manter-me livre e continuar cultivando a inocência. Ordens da irmã, que mandou-me ler o livro e do filósofo que colocou em palavras a soma do meu espírito.

MPV – setembro, 2008

Friedrich W. Nietzsche - Das Três Metamorfoses

Três metamorfoses, nomeio-vos, do espírito: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança.

Muitos fardos pesados há para o espírito, o espírito forte, o espírito de suportação, ao qual inere o respeito; cargas pesadas, as mais pesadas, pede a sua força.

“O que há de pesado?”, pergunta o espírito de suportação; e ajoelha como um camelo e quer ficar bem carregado.

“O que há de mais pesado, ó heróis”, pergunta o espírito de suportação, “para que eu o tome sobre mim e minha força se alegre?

Não será isto: humilhar-se, para magoar o próprio orgulho? Fazer brilhar a própria loucura, para escarnecer da própria sabedoria?

Ou será isto: apartar-se da nossa causa, quando ela celebra o seu triunfo? Subir para altos montes, a fim de tentar o tentador?

Ou será isto: alimentar-se das bolotas e da erva do conhecimento e, por amor à verdade, padecer fome na alma?

Ou será isto: estar enfermo e mandar embora os consoladores e ligar-se de amizade aos surdos, que não ouvem nunca o que queremos?

Ou será isto: entrar na água suja, se for água da verdade, e não enxotar de si nem as frias rãs nem os ardorosos sapos?

Ou será isto: amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando ele nos quer assustar?”

Todos esses pesadíssimos fardos toma sobre si o espírito de suportação; e, tal como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ele para o seu próprio deserto.

Mas, no mais ermo dos desertos, dá-se a segunda metamorfose: ali o espírito torna-se leão, quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser senhor em seu próprio deserto.

Procura, ali, o seu derradeiro senhor: quer tornar-se-lhe inimigo, bem como do seu derradeiro deus, quer lutar para vencer o dragão.

Qual é o grande dragão, ao qual o espírito não quer mais chamar senhor nem deus? “Tu deves” chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “Eu quero”.

“Tu deves” barra-lhe o caminho, lançando faíscas de ouro; animal de escamas, em cada escama resplende, em letras de ouro, “Tu deves!”

Valores milenários resplendem nessas escamas; e assim fala o mais poderoso de todos os dragões: “Todo o valor das coisas resplende em mim.

Todo o valor já foi criado e todo o valor criado sou eu. Na verdade, não deve mais haver nenhum ‘Eu quero’!” Assim fala o dragão.

Meus irmãos, para que é preciso o leão, no espírito? Do que já não dá conta suficiente o animal de carga, suportador e respeitador?

Criar novos valores - isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a liberdade de novas criações - isso a pujança do leão pode fazer.

Conseguir essa liberdade e opor um sagrado “não” também ao dever: para isso, meus irmãos, precisa-se do leão.

Conquistar o direito de criar novos valores - essa é a mais terrível conquista para o espírito de suportação e de respeito. Constitui para ele, na verdade, um ato de rapina e tarefa de animal rapinante.

Como o que há de mais sagrado amava ele, outrora, o “Tu deves”; e, agora, é forçado a encontrar quimera e arbítrio até no que tinha de mais sagrado, a fim de arrebatar a sua própria liberdade ao objeto desse amor: para um tal ato de rapina, precisa-se do leão.

Mas dizei, meus irmãos, que poderá ainda fazer uma criança, que nem sequer pôde o leão? Por que o rapace leão precisa ainda tornar-se criança?

Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer “sim”.

Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado “sim”: o espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista o seu mundo.

Nomeei-vos três metamorfoses do espírito: como o espírito tornou-se camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança.

Assim falou Zaratustra. E achava-se, nesse tempo, na cidade chamada A Vaca Pintalgada.

Texto: Assim Falou Zaratustra
Os Discursos de Zaratustra - Das Três Metamorfoses
Foto: Friedrich W. Nietzsche, 1844-1900

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A Caixinha Mágica


Minha sobrinha mais velha tem uma caixa-para-quando-estiver-triste. Nunca precisou ser usada, mas ela está lá, ao alcance da mão e da primeira lágrima. Dentro dessa caixa, objetos pessoais e intransferíveis que têm o poder de fazê-la feliz. Músicas, cartas, acessórios e chicletes, renovados conforme a validade.

L., que fará, em breve, quatorze anos, foi criada em berço de ouro, mas o ouro do amor. Sua mãe, tio-padrinho, avó e tia-avó têm lhe passado o melhor dos mundos de amor. Com sabedoria instintiva e intuitiva, eles formaram com ela uma aliança de afeto, cuidado e incentivo que a fizeram engatinhar, dar os primeiros passos, caminhar acompanhada para que, em breve, ela mesma possa alçar seus vôos solo nesse mundo alucinado em que vivemos.

L. escreveu aos quatro anos, leu aos cinco, criou suas primeiras e próprias estórias aos oito e continua amadurecendo em seu universo mágico da imaginação e, sem pressa, se prepara para Ser. Não tem as certezas absolutas dos adolescentes, o que a qualifica para diversas oportunidades que aparecerão e a farão optar pelos melhores caminhos para sua felicidade.

Ontem, com muito orgulho por minha parte, em um jantar japonês regado a risadas, conversávamos sobre literatura. Ela agora está na fase dos romancistas britânicos dos séculos XVIII e XIX, lidos no original, claro. Compara e critica traduções para o português e risca, com severa crítica, os erros da revisão dos textos.

Sua mais recente preocupação é com o novo acordo ortográfico da língua portuguesa, o que em sua opinião – e na minha também – empobrecerá a língua que, nos últimos setenta anos, terá sofrido sua terceira grande modificação. É pouco tempo para tanta intrusão.

A existência de L. em minha vida só me fez querer ser melhor. Seu primeiro abraço, registrado em foto para a posteridade, ganhei quando ela tinha quatro anos e, de lá para cá, nossas afinidades só cresceram, assim como meu amor por ela.

Ela é a minha caixinha mágica. Suas cartas, bilhetinhos, fotos, desenhos estão comigo, ao alcance da mão ou de alguma lágrima que teime em cair. A minha caixinha já usei.

MPV – setembro 2008


quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Outra História de Amor

“He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.”

Funeral Blues – W. H. Auden



Parte 1
“He was my North, my South, my East and West,”
Naquela tarde de setembro, distraidamente, você abriu a porta e o viu. Seus olhos eram puro mel e o sorriso tímido. Ele procurava seu amigo, mas você não ouviu mais nada, sua visão ficou turva, seus joelhos dobraram e você caiu pesadamente sobre a cadeira do quarto, onde buscou refúgio para sua dor. Doía corpo, doía mente, doía pensamento. Você não sabia o que pensava, não sabia o quê pensar. Recuperou forças, mas desceu a rua com noventa anos, devagar, cambaleante, olhando para baixo. Doía o estômago.

Entrou no ônibus à mesma hora e o motorista amigo a cumprimentou com o “bonjour” diário, sorridente. Você não reparou a gentileza, respondeu automático, procurou um assento vago e não ouviu as conversas em espanhol de todos os dias. Seus companheiros de viagem notaram algo diferente em você, mas nada comentaram, em respeito ao seu semblante fechado.

À noite foi jantar com seus amigos e ele estava junto, vestindo uma camisa azul marinho de manga comprida e quando seus olhares se cruzaram, você suspendeu a respiração. A conversa não foi registrada, somente o momento da despedida, quando você não conseguia mais entender coisa alguma.

Parte 2
“My working week and my Sunday rest”,
A afinidade entre vocês foi imediata. Faziam tudo juntos, desde o supermercado à lavanderia, ele ajudava-a nos estudos, contava-lhe estórias engraçadas, mostrava cicatrizes de tubarão. Você adormecia embalada pelo walkman sintonizado em rádios locais e acordava com o sol brilhando dentro de si mesma. Ele pegou sua mão e beijou-lhe a palma, você respirou fundo, olhou para a sua mão e olhou em seus olhos. Dias depois, ele pegou sua mesma mão e pousou-a em seu peito para você sentir seu coração acelerado. A partir de então, tudo correu. Um amor que você desconhecia completamente tomou seu peito de assalto, tomou seu corpo de assalto, arrebatou seu ser. Tudo o que até ali você julgava como verdadeiro e para sempre, tomou outro rumo. Magoou pessoas importantes em sua vida, sofreu com isso, mas o sentimento era tamanho que você não se julgou capaz de viver um só instante sem ele.

Mudou seus planos, sua vida, sua casa, seus amigos e, finalmente, seu país. Foi atrás de uma estória que só existe em contos de fadas. E viveu-a intensamente. Fadas podem não existir eternamente, mas elas existem por um certo período de tempo. E esse tempo foi seu e dele.
Parte 3
“My noon, my midnight, my talk, my song;”
Sua primeira anotação em seu diário após a mudança foi:
“momentos de sol iluminam minha vida neste país frio. Tudo tem sido infinitamente profundo e intenso, tudo me toca fundo, se eu imaginava como poderia ser bom, eu ainda não conseguia alcançar o quanto, na verdade, era sublime. Ainda flutuo no tempo e no espaço.”

Você vivia uma vida que não lhe pertencia, mas era sua; experimentava sentimentos nunca vividos, às vezes sentia-se em meio a um filme clássico de amor, produzido pelo melhor estúdio disponível.

A vida teve altos e baixos, como praticamente todas e você pensou: ali com ele, teve muitos dos melhores momentos de sua vida, indescritíveis, inesquecíveis e impossíveis de serem vividos novamente. Mas, com certeza, viveu alguns dos piores jamais imaginados. Algumas músicas do período, até hoje, você evita ouvir, tamanha dor provocada.

Depois de tão alto vôo, tão profunda queda. Após tanto amor, quanta dor.
Parte4
“I thought that love would last for ever: I was wrong.”
Naquela manhã de sol, você atendeu ao telefone, fingiu que não ouviu a pessoa do outro lado, desligou e, em seguida, deixou-o fora do gancho. Tudo estava pronto para a partida, você levantou-se pesadamente do sofá, caminhou até o carro, já carregado com as malas, deu a partida e esperou. Ele desceu as escadas, e vocês foram em silêncio até o aeroporto. Ele saiu do carro, pegou suas malas e veio lhe dar o abraço final. Você estava firme, com a cabeça erguida e conseguia esboçar um sorriso. Triste, mas era um indício de sorriso. Ele caminhou para a entrada e você ficou em pé, ao lado do carro, com a porta aberta, acompanhando-o com o olhar. Viu quando ele desapareceu no meio da multidão, então entrou no carro, sentou-se ao volante, abaixou a cabeça e chorou.

MPV – setembro 2008

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Lloyd Cole, Man Enough

Now that the low life has no meaning
'Cause you've been there, now you're gone
But your heart won't keep from cheating
It's stringing you along
Stranger to me, well what's the lowdown
Are you man enough to pray
For a better way of living
I believe i've lost my way
Oh may, could you please hold me
I believe i might fall
I believe that i might fall
Could there be a better way of living
Better than the easy way
Could the wretched be forgiven
Are you man enough to pray
Wore my heart upon my sleeve
To court the wretched and the free
But if by chance i'd lost my way
Would you help me find it babe
Oh may, could you please hold me
I believe that i might fall
I believe i might fall
Now that the low life has no meaning
'Cause you've been there, now you're gone
But your heart won't keep from cheating
It's stringing you along
Wore my heart upon my sleeve
To court the wretched and the free
But if by chance i'd lost my way
Would you help me find it babe
Oh may, could you please hold me
I believe that i might fall
I believe that i might fall
Wore my heart upon my sleeve
To court the wretched and the free
But if by chance i'd lost my way
Am i man enough to pray
Am i man enough to pray
Are you man enough to pray
Are you man enough to pray

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Irmãos

Minha família é grande sem o ser. Minha mãe, filha única, tem (ou teve) muitos tios e tias que não víamos, por inúmeros motivos. Meu pai tem uma irmã e três sobrinhas, minhas primas queridas, com as quais cresci e farreei. Eu tenho uma irmã (como já mencionei antes, de pais e mães diferentes) e um irmão (mesmos pai e mãe) seis anos mais novo que eu.

Com o passar do tempo, a diferença de idade entre nós dois diminuiu, mas não a de temperamento. Com, praticamente, uma geração entre nós dois, somos muito diferentes em quase tudo. Nos últimos anos, brigamos um com o outro, brigas que não estavam na sinopse inicial de nossa vida em comum. Isso leva tempo para ser superado, mas gosto de lembrar uma frase de um filminho bobo, blockbuster de sua época, em que um dos personagens principais diz “I thought we were invincible./But now I know that the things people in love do to each other they remember./If they stay together, it's not because they forget, it’s because they forgive” (“eu achava que éramos invencíveis./Mas agora sei que coisas que pessoas que se amam fazem umas às outras, são lembradas./Se elas permanecem juntas, não é por que elas esquecem, é por que elas perdoam”).

Assim, invoco os sentimentos que nos fizeram crescer juntos em idades tão diferentes e busco a esperança do futuro nos sábios ensinamentos de meu pai sobre família. Ao mesmo tempo, recordo épocas em que meu irmão ainda era mais baixo que eu, suas peraltices pela casa, implicâncias variadas; gol a gol no corredor, com bola de espuma; sua coleção de camisas de times de futebol, hoje passada ao seu filho mais velho; o relógio vendido oito vezes ao meu pai; suas festas à fantasia; as flores à primeira namorada; seu olhar embevecido ao me ver de noiva; seu primeiro carro; a entrada para a faculdade, e sua bela monografia de conclusão de curso; o nascimento de seus dois filhos, sobrinhos mais que queridos.

Certa vez, conversando com ele, disse que, pela lei natural das coisas, nós dois, juntos, é que choraremos, juntos, por nossos pais e juntos, somente nós dois, juntos, sentiremos o sentimento da hora, juntos. E isso, juntos, fará toda a diferença. Juntos. Como dizia Nietzsche, “às vezes é preciso fechar a mão por amor”, mas se nós permanecemos juntos é por que temos o dom de perdoar. Em mão dupla.

MPV – setembro, 2008

Diálogo do filme Indecent Proposal, 1993

sábado, 13 de setembro de 2008

Novo é o ato da Descoberta

A coluna de José Castello, hoje no Prosa e Verso do jornal O Globo vem com o título “Schnitzler de algemas”. Fala sobre o escritor austríaco (1862-1931) e sobre um de seus romances, "Crônica de uma vida de mulher” (Editora Record, tradução e prefácio de Marcelo Backes).

Na introdução, escreve: “Schnitzler afirmava que a psicanálise não era nova, só Freud era, de fato, novo. Da mesma maneira como, por exemplo, a América não era nova, mas Cristóvão Colombo, sim. O novo não é o que se revela, pois, na verdade, sempre esteve ali. Novo é o ato da descoberta, dizia”.

Saindo da alta intelectualidade, tanto do autor, como do articulista, e voltando para os sentimentos do dia-a-dia, descobrir, para mim, sempre foi a palavra mágica.
Por que descobrir traz o novo, mesmo que o novo seja velho, ou antigo.

Descobrir uma música, ou outra versão da música preferida; descobrir um livro, um autor, descobrir uma vila na calçada de prédios, descobrir um caminho, ao caminhar trajetos diferentes todos os dias; descobrir uma amiga, atrás da velha conhecida; descobrir um sentimento dormindo no sofá; descobrir uma receita para ingrediente antigo; trazer o novo para a vida.

MPV – setembro, 2008

Foto: Arthur Schnitzler
Escritor austríaco
1862-1931

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Confraria dos Bibliófilos do Brasil

Corria a manhã de 24 de setembro de 2002, não fazia nem um mês que eu estava de férias, ou melhor, na entressafra de empregos e eu lia o jornal, preguiçosamente na sala. Início da estação mais bonita no Rio, luminosidade do dia em alta, sem o calor escaldante do verão, brisa ainda fresca, entrando pela janela aberta do apartamento.

Peguei o Segundo Caderno do Globo e dei de cara com a matéria intitulada “O Olimpo do livro Brasileiro”. Li, com atenção, como leio tudo o que diz respeito a livros, livrarias, autores, sebos, editoras e afins. A reportagem era sobre a Confraria do Bibliófilos do Brasil, fundada sete anos antes, em Brasília, por José Salles Neto, e mostrava um clube de amantes do livro objeto, não só da literatura, que produzia verdadeiras obras de arte, ilustradas, numeradas, com tiragem limitada.

Fiquei fascinada, havia encontrado minha turma! É óbvio que, quando li alguns dos nomes da “turma”, descobri que eles estavam distantes de mim em todos os sentidos possíveis: geográfico, financeiro, intelectual. Mas sofríamos do mesmo Bem: o amor aos livros.

Desde pequena sempre li muito, incentivada por mãe proprietária de vasta biblioteca e pai dono de imensa curiosidade, inicialmente os livros de casa, depois os que pedia para comprar e então os que fui adquirindo. Entro nas livrarias para dar oi para os livros. Passo a mão por suas capas, leio sinopses, as primeiras linhas, cheiro os livros novos (não faça isso em sebos! Fiz e espirrei por dois meses), compro e levo para casa como um tesouro.

Terminei de ler a matéria que trazia duas formas de contato: uma caixa postal em Brasília e um endereço eletrônico. Caminhei até o computador e resolvi enviar uma mensagem de interesse em me associar. Depois de enviada, pensei: quanta gente não deve fazer o mesmo e a julgar pelos que já são sócios, minha chance é mínima...

Passados uns dias, recebi um telefonema da Inês, diretora da Confraria. Conversamos muito, basicamente sobre mim, meus interesses, o que fazia, até que ela formulou a pergunta mágica: “Você tem mais livros do que jamais conseguirá ler durante toda a sua vida?” respondi, sem titubear: “Claro!” Acredito ter sido ali a aceitação de minha candidatura a membro da Confraria.

Desde então, cada seis meses são de espera ansiosa pelo próximo livro que chegará. Dos vinte e três já publicados pela CBB, não tenho alguns dos primeiros, esgotados e hoje vendidos a peso de ouro em leilões. O próximo a chegar será “Guimarães Rosa Centenário – Três Contos de Sagarana”. Não vejo a hora!

MPV – setembro 2008

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Cães, Gatos e outros assuntos

Passeio pelo menos duas vezes por dia com minha mãe/dona/master of the universe. Sou conhecida na rua, os donos das lojas, o jornaleiro, porteiros e quase todos os vizinhos me acham muito charmosa. Vivem tentando me fazer graças, mas eu só ligo mesmo para os que me tocam o coração. E não sou uma conquista fácil.

Existe um pedaço de calçada em que já tenho permissão para andar sozinha, sem a guia, mas é só eu dar uns passos a mais, que volto logo para a prisão. Logo eu, que sempre andei solta, correndo pelos gramados da vida.

Tenho alguns amigos pela área, o Cafuringa, o Gutinho, o Tchulú, meu amigo surfista, e o Nemo, que encontro pouco. Como hoje fui passear na praia, encontrei-o. Ele tem a desagradável mania de me cheirar, mas eu dou o troco e cheiro ele também. E devo confessar: ele é lindo! Todos na rua, quando nos viram juntos, falaram que ele tinha arrumado uma namorada. Fiquei com vergonha, mas cheia de orgulho daquele bonitão gostar de mim!

Na praia, nunca me deixam correr solta, dizem que é lei e a lei é para ser respeitada. Mas eu consigo tirar uma casquinha, quando minha dona se senta no calçadão, na beirinha da areia. Fica uma brincadeira divertida que me enche de gás, eu corro até o máximo da guia, (e ela é curtinha, uma pena!) atrás dos pombos que pousam por ali, ciscando restos. Aliás, não entendo porque eles podem e nós não. Eu sou vacinada, vermifugada, banhada, minha mãe me passa um remédio mensal contra parasitas variados mas, mesmo assim, não posso brincar na areia da praia. Mas, voltando à brincadeira, eu corro atrás dos pombos, eles fogem, lógico, e eu volto correndo para o calçadão, dou a volta por trás da minha master e começa tudo de novo. Hoje tentei cavar a areia, como eu fazia na terra, mas não tem a mesma graça. Ficamos lá vendo o pôr do sol e voltei saltitante, para casa, com minhas orelhinhas abanando ao vento.

Minha dona já me disse que quando eu ando séria, num passo compassado, eu fico a cara do John Travolta naquele filme Pulp Fiction. Ela inventa cada coisa! Diz que é o ritmo do caminhar, e o balançar das minhas orelhas fica igual ao balançar dos cabelos dele no filme. Vai discordar...

Nas redondezas de meu prédio, mora um gato. Grande e moreno. Se eu não fosse uma cachorrinha criada no campo, poderia até dizer que ele é um gatão. Mas, o problema é que gatos fogem de cães no campo e eu corri muito atrás de gato, para espantá-los do meu território. Na cidade tudo é diferente. Gato enfrenta cão! Nunca tinha visto coisa semelhante! Na segunda vez que rosnei pro Morenão, ele esticou suas garras em minha direção e levei um susto. É claro que não deixei transparecer meu medo, minha mãe me puxou na mesma hora, e eu ainda dei uns latidos na moral. Agora já estou mais acostumada com a presença dele e nós passamos o tempo nos olhando. De longe. Ele lá e eu cá. Por mais que minha master tente me ensinar que cães e gatos podem ser amigos, acho que somente o tempo para eu me acostumar com a idéia.

Bom, agora tenho mais o quê fazer, como roer essa trança linda que ganhei, e outro dia voltarei para contar alguma outra estripulia.

MPV – Setembro 2008

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Aquele que só enxerga o que quer


O problema aumentou. Na verdade, vem caminhando na direção superlativa há muito tempo. Todo mundo finge que não vê. Atribui-se ao tempo, às aves migrantes, ao bêbado da esquina, à mulher de branco, menos ao óbvio.

Quando se resolve tocar no assunto, as respostas defensivas são agressivas, não dizem respeito ao problema em si e não trazem solução. Envolve terceiros e quartos, mas nada disso importa, para aquele que só enxerga o que quer. E quando se venda os olhos, não se enxerga nada.

Ao redor daquele que só enxerga o que quer, estão seus reféns emocionais, que permitem que a situação não saia do lugar. Caminham, todos, de mãos dadas, para o buraco desconhecido, negro sugador de energias vitais, que vomitará, de volta, apenas destroços de mentes exaustas.

Mentes exaustas, enfastiadas, enfraquecidas, aborrecidas, cansadas, mentes exaustas, exaustas, exaustas, que repetirão seus mantras até que tudo seja pó.

MPV – setembro, 2008

sábado, 6 de setembro de 2008

Notas Rápidas de uma Semana em Setembro

Segunda: Pensei, li, escrevi e conversei. Descobri. Voltei a terra e fiz coisas mundanas: banco, pet shop, supermercado, farmácia...

Terça: Pensei, li, escrevi e conversei. Entendi. Voltei a terra e fui ajudar minha mãe a instalar um dvd player complicado. Tira cabos, coloca cabos, liga, mexe com a seta, dá enter, liga-desliga, escrevi um manual para operações. Os aparelhos vêm cada vez mais cheios de funções que não precisamos. Poderia vir com seis botões: liga, play, stop, rewind, forward, legendas. Conversando com minha irmã, ela mandou-me trocar de canal na tv, só por que eu estava assistindo a um jogo de tênis. “Com tanta coisa boa para ver, você tá assistindo jogo? Tá maluca?”

Quarta: Pensei, li, escrevi e conversei. Provoquei. Voltei a terra e coloquei mãos à obra na obra em andamento. Amanhã tem reunião. Consegui instalar a câmera, presente de minha madrinha, em meu computador. Agora posso me exibir para o mundo tecnológico. Falei com meu sobrinho sobre um dvd que está para chegar.

Quinta: Pensei e conversei. Indaguei. Voltei a terra e me arrumei para a reunião no centro da cidade. Trinta e cinco graus à sombra. Andei, senti calor, peguei o metrô, senti mais calor, andei até a rua do Ouvidor, senti mais, mais calor e cheguei. A reunião com o pai de minha irmã (sim, somos irmãs de pais e mães diferentes) e sua mulher foi ótima. Uma reunião de trabalho em que se produz e ri-se muito é o paraíso. Depois da reunião, eles me convidaram para almoçar no japa, eu adoro comida japonesa, e foi mais um sem fim de causos e risos. Indescritível. Voltei para casa, refazendo o mesmo itinerário, mas com dois agravantes: os ambulantes gritavam mais àquela hora da tarde e eu escolhi o sapato errado para caminhar nas pedras portuguesas e driblar os buracos de minha cidade.

Sexta: Pensei, li, escrevi, conversei, trabalhei. Resignei. Voltei a terra e continuei a espera de algumas respostas de trabalho e do meu sócio, que foi se perder nas terras do Amapá. Falei com minha irmã, com quem falo várias vezes por dia, todos os dias, e por causa de uma ventania, entrou uma pedrinha em seu olho e ela saiu do oftalmologista como uma pirata, com tapa-olho e pomada anestésica. Se eu estivesse perto, ia desenhar uma caveira no tapa-olho. Já tentei falar com minha sobrinha mais velha e não consigo. Ah, esses adolescentes...

MPV – setembro 2008

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Dante Milano, Tercetos


Eu sou um rio, a água fria de um rio.
Profundo, cabe em mim todo o vazio,
Um reflexo me causa um calafrio.

Sou uma pedra de cara escalavrada,
Uma testa que pensa, e sonda o nada,
Uma face que sonha, ensimesmada.

Sou como o vento, rápido e violento,
Choro, mas não se entende o meu lamento.
Passo e esqueço meu próprio sofrimento.

Sou a estrela que à noite se revela,
O farol que vê longe, o olhar que vela,
O coração aceso, a triste vela.

Sou um homem culpado de ser homem,
Corpo ardendo em desejos que o consomem,
Alma feita de sonhos que se somem.

Sou um poeta. Percebo o que é ser poeta
Ao ver na noite quieta a estrela inquieta:
Significação grande, mas secreta.

Dante Milano (1899-1991)
Tercetos

Foto: Retrato de Dante Milano
Cândido Portinari
Pintura óleo s/ tela - 1931

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Mrs Henderson Presents

Assisti ao filme “Mrs Henderson presents”, descontraidamente, após zapear perdida por canais demais, com opções de menos.

É um filme do ótimo diretor Stephen Frears, de 2005, com Judi Dench e Bob Hoskins. Sobre o filme em si, diretor e principais atores dizem tudo, não preciso acrescentar mais nada.

Eu ainda não o havia assistido, e me comovi com o enredo. Baseado numa história real, não tem nada, nem nunca teve a ver com a minha vida, o filme é passado durante a Segunda Guerra, Londres intensamente bombardeada, e Judi Dench-Mrs Henderson compra um teatro e o põe para funcionar juntamente com o diretor contratado Bob Hoskins-Vivian Van Damme.

O que me chamou a atenção foi o relacionamento dos dois, o imenso afeto que surgiu ao longo de anos de convivência, brigas e acertos. As cenas que mostram o respeito entre eles, apesar de discordâncias, o momento exato da descoberta da admiração de um pelo outro, o amor que transcende os fatos corriqueiros da vida.

Mrs Henderson, no telhado de seu teatro, assistindo ao bombardeio alemão no leste de Londres, levou-me a viajar por sentimentos adormecidos e amortecidos nos dois últimos anos. Imaginei um filme dentro do filme, aonde passeavam diante dela, grandes casais que fizeram e farão, para sempre, parte da minha vida. Meu pai/minha mãe, Loloy/Lolô, Carlos Alberto/Regina, Nelson/Laurita, Renato/Sonia, Hilton/Vera, Felippe/Silvinha, João/Nazareth, Alberto/Yvone, Henrique/Clarice, Malcher/Leda. Todos dançando juntos, na última cena, dando para mim e meus irmãos, o melhor da vida, a própria vida.

Dançar para a vida, por que os dias serão cinzentos e ensolarados, as dores doerão, os amores deixarão suas marcas, boas e más, as saudades serão sentidas, os risos compartilhados, mas teremos dançado a vida, e isso é tudo o que importa agora.

MPV – agosto 2008

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Pessoal e Intransferível

Tarde da noite, eu já meio dormindo, minha irmã me ligou:

- Li suas últimas postagens. Tá bem impessoal, né?
- ???
- É... Você começou a escrever sobre coisas...
- ????
- Não fala mais das suas emoções...
- Como não? São crônicas, o que sinto, o que vejo, o que acontece...
- É, mas... tá diferente...
- Diferente... (bocejo) vou ver o que tá diferente...
- E não esquece que amanhã começa a segunda temporada da série "The Tudors". Confirma aí no seu aparelho o horário e me diz.

Bato uma continência imaginária, viro para o lado e torno a chamar o sono, não sem antes pensar: amanhã vou escrever esse diálogo. Ele é o símbolo de todos os 25 telefonemas diários trocados entre minha irmã e eu.

Nossa! Como é bom ter uma irmã como a minha! Que gargalha pelas coisas mais bobas, que estende a mão diariamente, que faz planos para daqui a 15 minutos e no décimo terceiro já planejou outra coisa. Que me acorda à noite para dizer que parei de escrever sobre emoções e me acorda pela manhã, totalmente pilhada, para dizer que me ama e que a nossa dieta do colesterol é maravilhosa!

Você tem uma irmã como a minha?

MPV - agosto 2008




segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Os Esportes e a Educação

Muito se falou, durante as Olimpíadas de Pequim, do dinheiro gasto com os nossos atletas, de fiascos e amareladas, muito se criticou o desempenho de vários. “Afinal, se não é para chegar em primeiro lugar, por que ir?”

Algumas considerações:

Primeira: Tenho grandes dúvidas de que todo o dinheiro “destinado” às várias modalidades de esportes, realmente chegue ou tenha chegado ao seu destino;

Segunda: Formar uma equipe olímpica implica em investimento sério de longo prazo, em todos os segmentos: encontrar os atletas com potencial olímpico, destinar verbas à sua educação e formação desportiva, formar federações com profissionais competentes – treinador, preparador físico, médico, psicólogo, nutricionista, e toda a equipe de apoio imprescindível a cada modalidade;

Terceira: Para encontrar esses atletas com potencial olímpico é necessário formação de base. E onde é a base? A escola. E onde está a escola no Brasil? No lixo. Em penúltimo lugar das prioridades. Afinal, povo com educação sabe escolher seus representantes, tem menor tolerância à corrupção, e maior nível de exigência na sociedade.

Quarta: Algumas das poucas medalhas conseguidas pelos atletas representantes do Brasil foram conseguidas com esforço próprio, recursos familiares, sem apoio, suporte, investimento de quem deveria ser o maior interessado nesses sucessos: o Estado Brasileiro. Então, chega a hora do pódio, e as lágrimas escorrem, a bandeira hasteada é a brasileira, o hino tocado é o nosso, mas o quanto de nosso realmente existe naquela conquista?

Quinta: Se levamos uma delegação de 277 atletas e só voltamos com 15 medalhas, onde está a falha? Naquele atleta que não teve apoio durantes os últimos quatro, oito anos? No atleta cuja força para vencer, o amor pelo esporte, a falta de alternativas, o fez seguir em vôo solo até as eliminatórias para índices olímpicos? E depois disso tudo, ou da falta de tudo, ainda temos a coragem de escrever, comentar na tv, falar na mesa de bar que fulano/a amarelou? Amarelou como, se ele/ela chegou até ali praticamente sozinho? Quem amarela, há muitos anos, com sua omissão, é o estado Brasileiro.

Fim: Se quisermos fazer melhor em Londres, se quisermos sediar em 2016, o trabalho tem que começar ontem. Mais apoio, melhores condições aos atletas, menos cartolagem, mais educação e seriedade. Infelizmente, não vejo isso em meu país.

Como diz uma professora de minha sobrinha, uma salMa de palmas para a educação no Brasil!

MPV - agosto 2008

Os Esportes e Eu

Desde as olimpíadas de Montreal, em 1976, eu não acompanhava os jogos com tamanho interesse, independente da performance da delegação brasileira.

Tenho uma cultura de torcedora, não necessariamente de apreciadora de esportes em geral. Quando o time, a cidade, o estado, o país estão representados em algum esporte, pára-se para torcer. Bem diferente de apreciar o esporte por sua capacidade de encantamento. Só o tênis escapa. – Apreciadora.

Em 1976, no início da adolescência, acompanhei os jogos olímpicos de forma obsessiva, numa tv ainda em preto e branco, durante minhas férias em Friburgo, muito motivada pelo desempenho dos ginastas, que vinham de recantos escondidos atrás da Cortina de Ferro. – Apreciadora.

Em 1977, assisti ao vivo, levada por meu pai, aos primeiros passos, ou melhor, passes, do vitorioso vôlei brasileiro, no Maracanãzinho, como torcedora de muitas gerações de atletas brasileiros, que venceram todos os campeonatos dos quais participaram. Torcedora e Apreciadora. Até hoje.

A partir de 1980, também como torcedora, influenciada pelo namorado, passei a acompanhar o Circuito da Fórmula 1, que perdeu a graça, para mim, com a morte prematura de Senna em 1994. Só voltei a achar graça este ano, com Felipe Massa em bons desempenhos. – Torcedora.

Com o futebol, tive meus dias de amor e de horror. Mas sempre como torcedora. Hoje em dia, só a Copa do Mundo ainda me motiva a passar noventa ou mais minutos diante da tv. Estádio, nem pensar, já perdi a conta de quantas vezes fui assistir ao Flamengo e à Seleção no Maracanã e não tenho mais disposição de pegar chuva ou sentir calor e ainda ficar na dúvida do lance, quando se vê muito mais confortavelmente e com certeza no replay, em casa, sentada na poltrona preferida. Totalmente Torcedora.

Nos jogos de Pequim, seduzida pela capacidade de superação dos atletas, assisti a várias modalidades do atletismo, acompanhei a natação, as ginásticas, alguns jogos do tênis, os saltos ornamentais, o futebol e o vôlei. Outros não vi, ou porque não conseguia ficar acordada, ou não passava vt nas horas em que eu estava disponível, ou simplesmente não foram transmitidos pelos canais que tenho disponíveis.

Desta vez, em Pequim, lembrei-me da sensação, de trinta e dois anos atrás, de assistir à magia de alguns poucos que, com suas pernas, braços, cabeças, giros, saltos, braçadas, fazem um belo espetáculo e triunfam após esforço e muita abnegação. Apreciadora, com pitadas de Torcedora.

MPV - agosto 2008

terça-feira, 22 de julho de 2008

Interpretação de Texto, de Vida



Quem, na escola, tirou nota máxima em interpretação de texto? Quem aprendeu a pensar com os professores, descobriu, desde cedo, que existem entrelinhas nos textos da vida?

Quem pode afirmar que o claro é branco, não é bege, ou cinza, ou amarelo? Quem sabe que a luz pode ser sol, lâmpada, vela, descobrimento? Quem percebe que a iluminação não é somente o dia claro, mas também o que nos abre caminhos e nos faz ver o que estava escondido? Estava escondido, ou a nossa percepção era falha?

O quanto é muito? Muito amor, muitas saudades. O que quer dizer isso para você? Muito amor é fazer tudo e até mais por quem se ama? Mesmo em discordância? Mas é que eu amo muito... Então me dou em excesso, mas quanto é excesso? Ou dou menos. Mas quanto é menos? E menos que o quê ou quem?

Muita saudade é pensar três vezes por dia, ou três vezes por ano no objeto da falta? Se penso três vezes por dia é porque me sobra tempo e três vezes por ano porque o tempo é escasso? Mas se penso três vezes por dia um milionésimo de segundo e três vezes por ano passo vinte e quatro horas pensando? Quando é muito e quando é pouco? Quem interpreta de quê forma?

Quantos caminhos diferentes podem derivar de uma única frase? Muitas vezes perguntamos qual era a intenção do autor ao escrever ou dizer aquele texto. Mas já nos perguntamos qual era a intenção do leitor ou ouvinte?

Cada um de nós tem somente uma intenção quando nos comunicamos? Quantas vezes dizemos algo, mas na verdade queremos falar outra coisa? E quantas vezes dizemos aquilo mesmo que queremos, mas chega de forma deturpada ao ouvido do outro? O que é deturpado? É quando eu falo uma coisa e o outro entende errado, ou é quando o outro entende errado o que falo? É quando falo errado e o outro entende de sua maneira? É diferente? É a mesma coisa? O que eu quero dizer?

Qual a intenção no momento da fala e qual a intenção no momento da escuta? Por que tantas vezes temos que explicar o que queríamos dizer? É porque dissemos errado, ou o outro entendeu errado? Para quê e por que tantos ruídos na comunicação?

Por favor, alguém me ajude, Freud, Shakespeare, Nietzsche, McLuhan, Chico!

MPV – julho 2008
Foto: Retrato de William Shakespeare

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Fragmentos de Alma


O que mais a incomodava eram as desculpas pelas ausências. Seu comportamento também não era propriamente entendido por ela, somente aceito. Chegar a um compromisso sozinha era quase como não ter ido. A primeira vez que se desligou desse sentimento de aprisionamento foi na festa do tio. Riu, conversou, bebeu e brincou, sem se lembrar do passado, ou do ausente, como se, enfim, liberta das amarras que a seguraram por tantos anos. Ela havia permitido essas amarras, por acomodação, ou por ser o preço a pagar, ou simplesmente pelo tempo corrido sem percepção.

MPV – julho 2008

quarta-feira, 9 de julho de 2008

O Segredo do Gatto


Era uma vez um gato malandro, de pelo branco e olhos cor de mel, patas pretas, camisa listrada, calça de botão e chapéu de panamá, que vivia no Rio de Janeiro. Seu nome era Gatto Caiz e ele era alemão.

Em sua juventude, muitos anos antes, ele havia atravessado meio mundo para chegar ao que antes fora a cidade maravilhosa, em busca de trabalho que rendesse alguns vinténs para sua numerosa família nascida e criada em Mister Raiche.

Saiu de Mister Raiche escondido no maleiro de um ônibus, foi para Stuttgart e, caminhando, chegou a Estrassburgo, com as patinhas meio gastas. De lá, na caçamba de um caminhão de ovelhas, foi para Marselha, onde entrou em um navio cargueiro clandestinamente. A viagem de Marselha a Málaga foi longa e perigosa. Ele era um gato clandestino que facilmente poderia virar comida para os tripulantes do navio. Em Málaga, perambulou pelas ruas até descobrir uma kombi que iria transportar alguns trabalhadores portugueses de volta a Lisboa. Em Lisboa, se escondeu em um veleiro de brasileiros que aportaria no Rio em vinte e sete dias.

No dia 20 de janeiro do ano da graça de mil novecentos e tantos, Gatto Caiz desembarcou no porto do Rio, sujo, faminto e enjoado pela longa travessia. Ele havia conseguido sobreviver comendo carnes salgadas que os velejadores levavam e grelhavam todos os dias.

Quando Gatto Caiz desembarcou no Rio, jurou que nunca mais comeria um pedaço sequer de carne vermelha.

Após algum tempo de Rio, já dominava um português bastante avançado, mas ainda mantinha pesado sotaque.

Com suas habilidades e inteligência, logo conseguiu um emprego em uma fábrica de sardinhas enlatadas, onde não permaneceu, por sua personalidade faminta. Em pouco tempo, o gerente de sua linha de produção reparou que a produtividade havia caído e descobriu por que: a cada dez sardinhas enlatadas, Gatto Caiz comia uma. Foi para a rua sem o salário do mês, mas encheu os bolsos de sardinhas antes de sair.

Andando pelo centro do Rio, leu em um cartaz a solicitação de funcionários para uma fábrica alemã de óculos, a Dom Quixote. Gatto Caiz olhou para o céu e viu ali seu futuro passar diante dos olhos. Como falava o alemão e estava se saindo muito bem no português, foi contratado na hora.

Na Dom Quixote, Gatto Caiz fez carreira e vida. Todos os anos ele voltava a Mister Raiche no fim do verão europeu, a título de reuniões inadiáveis com os donos da fábrica alemã. O que, para ele e seu segredo, era mais do que conveniente.

Um belo dia, Gatto Caiz conheceu a leoazinha Pellyss Parisse e se encantou com aqueles cabelos revoltos, seu pelo claro, seu andar felino. Não seria a Lei Natural das Coisas, já que ele era um gato malandro e ela uma leoa ciumenta. Mas se apaixonaram e ela jurou que nunca o devoraria, mesmo que tivessem que morrer de fome.

A leoa Pellyss também trabalhava, tinha sua vida e eles viviam felizes e contentes, cada um completando o outro. Todos os anos eles faziam uma viagem interessante, o que só reafirmava como gostavam da companhia um do outro. Por comodidade casual, tiravam férias juntos, no fim do verão europeu, após a reunião anual de Gatto Caiz em Mister Raiche.

Certa vez, surgiu um fato novo: Gatto Caiz teria que ir à Mister Raiche em agosto, pleno verão, teoricamente, para uma reunião fora de hora. Pellys Parisse desconfiou quando ele avisou-a da mudança de planos, antecipando a viagem que fariam juntos.

Gatto Caiz embarcou na primeira classe do vôo da Lufthansa para Mister Raiche no dia 20 de julho do ano da graça de dois mil e poucos e não reparou que a leoa Pellys Parisse embarcou no mesmo vôo, na classe econômica, disfarçada de tigresa de unhas negras.

Ao chegarem a Frankfurt, cada um embarcou em uma limusine previamente alugada e a leoa-tigresa seguiu o gato Gatto na longa viagem até a cidadezinha.

Gatto Caiz foi direto para uma casa muito antiga e muito bem conservada – e não para a fábrica, como deveria ser – com um jardim bem cuidado, com lindas flores e uma porta imponente. Quando ele saiu da limusine, a porta da casa se abriu e saíram correndo em sua direção uma gata cor de chucrute e oito gatos de diferentes tamanhos, idades e pelagens. Chamavam-se, do mais velho para a mais nova: Adler, Bach, Gerda, Johann, Kristal, Rauchig, Falk e Heidi. A gata chucrute chamava-se Panzer e era sua esposa alemã.

Na verdade, durante todos aqueles anos, Gatto Caiz havia mantido em segredo sua numerosa família alemã, residente na pequenina cidade e um problema de saúde com o filho Rauchig, inveterado fumante, havia obrigado que ele antecipasse suas férias.

Com isso a leoa-tigresa de unhas negras descobriu tudo e, dentro da limusine, deu um urro, saltando na velocidade de um leão ferido, e, com suas garras afiadas, nocauteou todos; seus dentes afiados estraçalharam, um a um, toda a família gato-chucrute.
Gatto Caiz suplicou por sua vida. Invocou os anos de amor e a promessa dela de que nunca o devoraria.

Pellys, a leoa-tigresa deu um suspiro, cantarolou a música do Rei: “Você foi o maior dos meus casos / De todos os abraços o que eu nunca esqueci / Você foi dos amores que eu tive / O mais complicado e o mais simples pra mim”... e de uma bocada, engoliu Gatto Caiz, o gato malandro mais carioca que a Alemanha já conheceu.




MPV - julho, 2008


quarta-feira, 11 de junho de 2008

Meu tio morreu

Meu tio morreu. Viveu à distância de alguns quarteirões, mas estava a quilômetros longe da alma e da bagunça familiar. Meu tio morreu distante. Ao lado de casa, do outro lado da rua, mas longe do conhecimento e do riso em família.

Meu tio morreu e meu pai chora. Chora também minha madrinha. São lágrimas de um tempo distante, em que eram crianças e viviam juntos, na casa de meus avós. São lágrimas do que poderia ter sido se tudo tivesse sido diferente.

Meu tio morreu e não havia brincadeira no Natal, nem presente no aniversário; não havia lembrança do aniversário. Não havia hábito, ou costume. Pouquíssimas vezes o vi. Morreu longe, no bairro ao lado, distante na alma.

Meu tio morreu e só hoje conheci minha prima, nunca a tinha visto, não conhecia seu rosto, nunca tinha ouvido sua voz. Conheci um rosto triste, ouvi a voz de choro, senti a sua dor. Crescemos na mesma parte da cidade, vivemos na mesma época, passamos uma pelas outra sem nos reconhecer.

Meu tio viveu longe e agora morreu. Continuará longe.

MPV – junho, 2008

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Flamengo versus América


Quando meu irmão nasceu em 1969, meu pai, com 32 anos e americano apaixonado proclamou: “meu filho poderá escolher o seu time, contanto que não seja o Flamengo”.

Nos dez anos seguintes, inaugurando a “Era Zico”, o Flamengo seria o campeão carioca cinco vezes, outras cinco da Taça Guanabara, venceria inúmeros outros torneios e campeonatos e meu pai reconheceu ser impossível, naquele momento, separar o menino de seu destino: Ser Flamenguista.

Foi por volta de 1976 o batismo do menino flamenguista no grande Maracanã. Meu pai, diligente e atencioso com a paixão do filho, levava-o aos jogos, inicialmente nas cadeiras, mais tarde nas arquibancadas, para que meu irmão visse, ao vivo, seu time jogar.

No primeiro Flamengo e América assistido pelos dois, ainda nas cadeiras, meu irmão, todo paramentado de Flamengo, bandeira e tudo, pediu: “pai, gol do América, você não pula, gol do Flamengo eu não pulo, tá?” Meu pai, imediatamente, rejeitou a idéia, cada um que vibrasse pelo seu time, onde já se viu tamanho disparate?

Início de jogo, meu irmão comia cachorro quente, sorvete, refrigerante, tudo o que faz a alegria de um menino dentro do estádio torcendo por seu time, enquanto meu pai, zeloso, segurava a bandeira do Flamengo. Primeiros minutos, gol do América. Meu pai, com a bandeira do Flamengo nas mãos, levantou e começou a gritar gol, a pular e rir feliz. Dois senhores distintos, sentados nas cadeiras atrás, pensaram se tratar do maior ignorante do futebol: gol do América, o sujeito com a bandeira do Flamengo, pula e grita.

Ainda no primeiro tempo, o Flamengo empatou. Meu pai continuava a segurar a bandeira, ficou sentado, cabisbaixo, enquanto meu irmão pulava enlouquecido. Se os dois senhores tinham alguma dúvida, ali ficara comprovado: o sujeito era uma anta para o futebol. No segundo tempo, Flamengo fez dois a um, virou o jogo e, novamente, quem vibrou foi meu irmão, enquanto meu pai continuava a segurar a bandeira adversária. Fim de jogo, filho flamenguista feliz da vida, pai americano carregando bandeira.

Um pouco mais velhos, os dois voltam ao Maracanã, para outro Flamengo e América, dessa vez, arquibancada, torcida do Flamengo, que meu irmão não fazia por menos. Início do jogo, Flamengo faz um gol, meu pai se vira para falar com o filho e cadê? Meu irmão estava pendurado nos braços de um torcedor flamenguista imenso, um armário três por dois, os dois pulando e rindo de alegria com o time.

Depois disso, foi o tempo do Flamengo vencer qualquer disputa, até chegar ao Mundial de Clubes, e meu irmão, já com doze anos, perdido para sempre em sua imensa paixão rubro-negra, contagiou toda a família e amigos próximos. Certa vez, minha mãe perguntou se o Flamengo jogasse contra a Seleção Brasileira, para quem meu irmão torceria. Ela tem alguma dúvida?

Hoje em dia, meu pai assiste aos jogos e torce pelo Flamengo, apesar de negar veementemente, junto com o filho, agora pai de outro flamenguista de onze anos. Três gerações unidas por uma paixão: o futebol. Ou seria o Flamengo?

MPV - fevereiro 2008

domingo, 6 de janeiro de 2008

Hóspede do destino

“Mas o hóspede inconvidado
Que mora no meu destino
Que não sei como é chegado
Nem de que honras é digno”
Fernando Pessoa

Quem será o hóspede que mora em meu destino?
Será que há, ou não?
Virá?
Surgirá do nada, do improvável,
Irá me arrebatar, para no mesmo instante,
Abandonar?

MPV – setembro 1990

Impossibilidade

Vejo seus olhos me olhando,
São olhos febris, incendiários,
Que me perseguem na rua,
Que não me deixam dormir.
Quando sinto seus dedos,
Tocando a ponta dos meus,
O calor percorre o corpo, que estremece e
Não esquece como tudo começou.
Quando você me esperou,
Tocando meu ombro e sorrindo para mim.
A conversa pela noite,
Repleta de mãos e toques, dedos incansáveis,
À procura de nós.
Aonde nos deixamos para trás?
O que nos impede que façamos o escrito?
É o calor que esfria, na noite que cai lá fora.
É o dia que desperta
A razão da impossibilidade,
Fazendo do momento o intervalo da minha história.
Pois um dia é choro,
Mas no outro a glória.

MPV – dezembro 1989

Um amor descoberto

Revendo o filme de 1987, “Nunca te vi, sempre te amei”, no original, “84 Charing Cross Road”, com Anne Bancroft e Anthony Hopkins, dei-me conta de um amor que não sabia; o título poderia ser um pouquinho diferente: “Sempre te vi, te amei e não reparei”. Como é que podemos amar alguém e não reparar? Justamente um sentimento tão forte, que modifica vidas, que transforma relacionamentos, que faz com que cometamos loucuras?

Então, conto a estória de Elizabeth.

Liz era gerente de uma gráfica, casada, trabalhava muito e gostava do que fazia. Almoçava todos os dias, sozinha, na mesma mesa, do mesmo restaurante. Um dia, conheceu Gerard, que também almoçava só, no mesmo restaurante, todos os dias. Gerard sentou-se em uma mesa próxima e puxou conversa. Variada, lacônica, com grandes espaços entre assuntos. Falaram sobre o tempo, escândalos políticos, sobre a cidade, cinema, livros. Não falaram de assuntos pessoais, e assim, passaram a almoçar juntos, em mesas separadas por quase um mês.

No trigésimo dia, Gerard chegou depois de Liz ao restaurante e, ao invés de sentar em sua mesa costumeira, perguntou a ela se poderiam almoçar juntos. Ele reparou em sua aliança, ela em seus olhos. Como ele era bonito! Durante um mês, almoçaram juntos todos os dias da semana, sem falhar um. Começaram a trocar mais informações pessoais, gostos, músicas, mas falavam pouco das próprias famílias. Ela era casada, ele não. Ela tinha um marido, ele namoradas.

No vigésimo sétimo dia do segundo mês, Liz não apareceu para almoçar e Gerard ficou sozinho na mesa dos dois. Três dias se passaram e ele não tinha notícias, nem sabia como encontrá-la.

No primeiro dia da semana seguinte, mesma hora de sempre, ele chegou ao restaurante e ela já estava lá. Gerard sentou-se e não fez perguntas. Almoçaram um pouco envergonhados, conversaram assuntos variados, falaram de seus autores prediletos. No fim daquele almoço, ele encostou de leve em sua mão e perguntou se eles poderiam trocar e-mail, celulares, para que pudessem se comunicar quando não pudessem almoçar juntos.

Liz aquiesceu e, assim, no terceiro dia do terceiro mês, eles passaram a uma nova fase do relacionamento. A partir daquele dia, todas as manhãs, ao chegar à sua sala, Liz ligava o computador e lá estava uma mensagem de bom dia, já enviada por Gerard. Na hora do almoço, eles se encontravam e riam. Ele a fazia rir muito e muito e muito mesmo. No fim do dia, Liz enviava uma mensagem de boa noite, um até amanhã. As mensagens eram sempre muito espirituosas e ela guardava tudo em uma pasta separada, para reler quando quisesse sorrir.

Ele a fazia sorrir.

Muito tempo após o primeiro almoço em mesas separadas, muitos meses depois da primeira troca de mensagens, após muitos telefonemas para falar de nada, Liz chegou apreensiva ao almoço e sentou-se à mesa onde ele já estava. Era a mesa deles, ninguém mais usava aquela mesa, reservada diariamente para os dois. E contou a ele que a gráfica estava transferindo-a para outro estado, ela viajaria em pouco tempo, os almoços deixariam de existir.

Gerard tentou fazer piada, animá-la, seria uma experiência ótima, uma promoção, ela mesma estava entusiasmada com a idéia do novo desafio, mas alguma coisa se contraía dentro dela e, pouco experiente, não sabia definir o que era.

No quinto dia do décimo sexto mês, Liz partiu rumo ao novo emprego e Gerard voltou a almoçar sozinho. Longe fisicamente um do outro, ainda trocaram mensagens eletrônicas, com um espaçamento cada vez maior entre a notícia de um e a resposta do outro, até que, um dia, cessaram. Perderam de vez o contato. Nunca mais se viram, se falaram, se tocaram, mesmo que sutilmente, nunca mais almoçaram juntos, nunca mais souberam um do outro.

Anos se passaram e, um dia, Liz arrumando arquivos de computador, encontrou sua correspondência trocada. Leu cada uma delas e, à medida que avançava na leitura, dava-se conta do quanto ela havia estado apaixonada, sem saber.

E sorriu.

MPV - janeiro 2008

Desejos para 2008

Em 2008,
Para os distantes, presença;
Para os europeus, navios que atravessem o oceano;
Para os americanos, asas para os trópicos;
Para os que não vejo há muitos anos, encontros;
Para os que vi e perdi, reencontros;
Para os que perdi, saudades;
Para os que não entendem, compreensão;
Para as novas amizades, continuação;
Para os zangados, sorrisos gentis;
Para os felizes, eternidade;
Para os sempre presentes, amor;
Para os com crianças, brincadeiras;
Para os com animais, cuidados;
Para a família, união;
Para cada um e todos, paz e saúde.

Feliz 2008

Feliz 2008.
Paz, paz, paz.
Saúde.
Amor.
Dinheiro.