sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Is this true?

The question is «how much of my story is true?» and it is asked every time after David Huddle gives a public reading. He thinks this is a naive question, but he also has a deep interest in the answer; not only when the question is made for him, but also when he asks this question to someone else. He admits that part of his reading pleasure comes from guessing about the personal experience upon which the author probably has based parts of his story.

When David Huddle starts to write a story, he usually bases it on something he had lived through, but as he is writing it, he quickly forget what actually happened. The limit between truth and imagination starts to shade. As he tells us «my memory of the truth of what happened has been clouded by my many alterations of it.»

He wishes he had had a chance to chat with some famous writers to ask them about passages from their books, what had been their personal experience and learn «a great deal about the mix of memory, imagination, language, and epistemology in the individual writer’s composition process.»

He also has writing colleagues who don’t like to be asked about the truth of their stories. He explains this point as if the author admits that the story is completely true, the audience feels that there wasn’t much to be writing. On the other hand, if the author admits the story is entirely imagined, the audience feels that there’s really not much to that writing.

What he really thinks about this contradiction is that what matters is «the quality of the story, not which brain cell produced it.»

I agree with the author, when he tells about the limit between truth and imagination, when you write a story. Each life experience is very personal and it can happen to more than only one person, that still it will be felt in different ways.

Writing a story is to use our personal experience as a base, and to change it as we desire to build stronger characters in a way that everyone has, at least, a little bit of themselves.

MPV – outubro 1990 - UCSD - Report based on the article “How much of my story is true? That’s a terrific question” written by David Huddle, published on New York Times Book Review, on october 7, 1990.

Sweet Mystery

It is easy to find people who know Agatha Christie, the famous english mystery author. But when A.L. Rowse talks about her, his biggest interest is her life, which he thinks is a far more interesting study.

Mrs. Christie’s husband once told Mr. Rowse that «she was an exceptional combination of outer diffidence and inner confidence», it means she had been so modest about herself, even though she was a famous writer all over the world.

Agatha Christie used to say that there was nothing immoral in her books, only murder, and there was no gloating over the crime in there. Her mais interest in writing a story was the unravelling of the puzzle and she had done it with splendour. She was an author with a strong combination of two gifts: her original talent at constructing plots and her notable gift for dialogue. These together with her instinctive understanding of human behavior made Agatha Christie a famous name and a succesful writer.

Mr. Rowse tells us that even though Agatha Christie had to be a friendly woman, nobody knew the inner woman and just a few understood her. As he wrote, «her reticence and reserve were instinctive and absolute, no one penetrated beyond them(...). As a real writer, not just a detective story machine, she had a secret life in the fantasy world of the imagination.»

Agatha Christie had bad moments in her life when, after eleven years of marriage and a much loved daughter, just after her mother’s death, her husband declared that he had fallen in love with another woman, demanding a divorce. Some years after her shock, she met Max Mallowan, an archeologist who felt in love with her. He was patient and this, together with friendship, companionship and love gave her the basis for her second and happy marriage.

With her new mariage, a world of experience came into her life therefore she had a new creative inspiration that could hardly have been hoped for and a far richer life than it could ever have been with her first husband.

Reading about Agatha Christie’s life is a pleasure. She used to be the first writer of our lives, when we were younger and had all the time to spend nights awake reading page after page, working together with Mr. Poirot, with Mrs Marple, to discover things that we couldn’t believe possible.

In my youth, Agaha Christie taught me how to think about different possibilities and how to look at the many sides of the same picture. This kind of thinking has been useful for real life when we have to make decisions about something ad sometimes is hard to choose.


MPV – outubro 1990 - UCSD - Report based on the article “Ah, Sweet mystery, the Agatha I knew” written by A.L.Rowse, published on the New York Times Book Review, on october 14, 1990.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Ilustre Desconhecido

Dario era homem precavido. Só saía de casa depois de se certificar sobre o tempo, levava sempre um dinheiro a mais para uma emergência ou um assalto. Junto da identidade, a carteira com o tipo sangüíneo e o telefone do único parente vivo: um sobrinho em Volta Redonda. Ainda bem que o tempo estava firme, seria menos penosa a fila da aposentadoria sem chuva. Saiu de casa antes das seis, para ser um dos primeiros. Pegou o ônibus e, ao saltar, quase levou um tombo, não estava enxergando direito. Dois passos, tropeçou num buraco e tentou se apoiar em um muro que não existia. Caiu sentado na calçada. Algumas pessoas passaram por ele, sem dar atenção. Outra reclamou que o velho estava bem no meio da calçada, atrapalhando o caminho. Dois carregadores chegaram perto e perguntaram o que ele sentia. Dario tentou responder, abriu a boca, mas cuspiu sangue. Os carregadores recuaram enojados. Uma senhora que passava disse para eles tomarem cuidado, os bêbados costumam ser violentos.

Dario se estendeu na calçada, respirando com dificuldade. Saía um filete de sangue pelo nariz. Os carregadores se agacharam e abriram seu paletó, afrouxando a gravata. Dario apontava para o bolso com a carteira. Eles encontraram o dinheiro e saíram dizendo que iam comprar remédio e água. Um menino batia uma bola e quase acertou Dario, um senhor de óculos desviou e disse que o velho estava morrendo. Foi um corre-corre. Pessoas querendo ver, outras já tinham visto. Uma gorda, com ares de enfermeira, se aproximou, abriu os braços e, com uma força descomunal, arrancou o paletó de Dario, desapertando-o. Duas prostitutas lutavam pelo privilégio de segurar o paletó, que acabaram rasgando na altura do bolso. A carteira caiu no bueiro. Os olhos de Dario ficaram vidrados e seu corpo sacudiu todo em espasmos irregulares e contínuos. A multidão recuou horrorizada. As prostitutas saíram correndo, quando ouviram a sirene da polícia, cada uma com um pedaço do paletó.

O guardas se aproximaram e fizeram um cordão isolando o cadáver que, após o último espasmo, havia ficado torto, cabeça para frente e corpo para trás. Alguém trouxe um jornal para cobrí-lo, mas ventava e o jornal foi levado pelos ares. Colocaram quatro velas em torno do homem, mas o vento não permitiu acendê-las.

A multidão começava a perder o interesse e se dispersar, o corpo contorcido não chamava mais a atenção. Vieram dois outros guardas, para substituírem os primeiros, famintos àquela hora. O rabecão estava com muito trabalho na zona sul e só passaria tarde da noite. Um guarda comentou com o outro que era um absurdo um velho daquela idade sair sem documentos. Iria mofar muito tempo no IML até alguém se dar conta da sua ausência, ou, então, iria para a escola de medicina.

MPV – julho 1989
Inspirado e baseado no conto de Dalton Trevisan “Uma vela para Dario”

Meu Herói

Como eu poderia sair dessa? Precisava arrumar um jeito de escrever o best-seller que deveria ter escrito há mais de um mês e fingia esquecer. Uma viagem de férias no meio do período foi providencial e me ajudou a adiar. Mas, agora, não existia mais como fugir dele.

Normalmente, quando ia escrever alguma coisa, primeiro eu pensava na idéia básica que me martelava a cabeça durante algum tempo. Quando ela já havia amadurecido o suficiente (o que muitas vezes significava dias e noites de martelação), eu começava a escrevê-la.

O problema era justamente esse; já havia passado muito tempo e nada surgia no front. Nem mesmo a idéia básica. Eu viajei com aquela barulheira infernal em minha cabeça e nada aconteceu. Abri a gaveta mental de idéias, mas ela se recusou a me dar qualquer ajuda para o tema. Comecei a escrever assim mesmo. Pilhas de papel foram para o lixo.

Resolvi, então, fazer uma última tentativa. Relembrei os ingredientes para o texto: belas paisagens, (que se transformariam em locações), intrigas, pessoas bonitas, poderia até colocar um suspense na jogada. Eu tinha que escrever a estória de olho nos milhões de dólares que iria receber com a venda dos direitos de filmagem para Coppola. Tudo bem cinematográfico. Mas as idéias não fluiam. Pensava no herói, imaginava quem seria, como se vestiria e o que sentiria. Poderia ser um inescrupuloso investidor da Bolsa, de nome Wallace James, que conseguia tudo, tinha um harém de fãs e só andava em sua limusine tripla, infinitamente branca. Poderia ser uma super executiva, independente, desejável, que controlava um conglomerado de empresas. Ela se chamaria Elizabeth (homenagem à minha amiga invisível da infância) e teria o mundo a seus pés.

Mas não adiantava. Quanto mais eu pensava no herói do cinema, mais me surgia a imagem do herói-nosso-de-cada-dia, do anti-herói, da gente comum. Quanto mais eu imaginava as belas locações no sul da França, mais eu via o Seu José, pés no chão, andando seus não sei quantos quilômetros diários para chegar ao canavial. Quanto mais eu via o jatinho particular, levando Wallace James para aonde bem desejasse, mais eu enxergava os habitantes de uma vila perdida no meio do nada, com suas roupas limpas de domingo, andando em direção à igreja, onde cantariam seus hinos e louvariam o amor. E por mais que desejasse Coppola, só encontrava gente do povo, cineastas que são, rascunhando seus próprios roteiros.

Achei melhor, então, escrever sobre o Seu Gualberto, aquele que tinha um sonho...Não. Isso já é outra estória. Fica para o exercício de época.

MPV - julho 1990

Colhe o Dia

Há um ano atrás, exatamente um ano hoje, encontrei o meu amor. Ou reencontrei, se preferirem. Passeava por aí, já achando que essa estória de encontrar o amor da vida era coisa dos outros, de alguns afortunados ou mentirosos, que a tampa não existe e a panela às vezes fica cheia, às vezes vazia, conforme o momento, mas sem nenhum prato especial.

Vivi. Ou melhor, tenho vivido uma vida boa, com os altos e baixos que todo mundo tem, alguns momentos memoráveis e outros nem tanto, com estórias engraçadas que poderiam estar em qualquer episódio da “Comédia da vida privada”. Não tenho muito do que me queixar e os grandes problemas que apareceram, foram superados com uma boa margem de segurança. Posso perfeitamente dizer, caindo no lugar comum, que o sol brilhou durante a maior parte de meus dias, mas de tempos em tempos e sem aviso prévio, me atacava uma angústia inexplicável.

Eu mudei de idéia e de país, de emprego e de amigos, comecei e recomecei, tendo zerado a conta das referências de vida algumas vezes. Mas, tanto nos melhores, quanto nos piores momentos, a angústia chegava vagarosa, feito um monstro das trevas, atravancando os caminhos e fechando os sorrisos, trazendo distantes lembranças que chegavam a doer, por serem apenas isso - lembranças.

Eu havia desistido do amor. Depois de alguns caminhos errantes, que me afastaram do ponto inicial, desisti e fiquei à deriva, num ir e vir nauseabundo que, às vezes, fazia rir, mas não aconchegava. Muito tempo andei por aí, olhando os casais se abraçando na rua, olhos nos olhos, enamorados, trocando beijos e juras de amor e imaginava-os atores de um filme para o qual não fui convidada. Fazia cálculos e tecia troças sobre os desencontros, dizendo que se a chance de encontrar a alma gêmea é de um em três bilhões de terráqueos - considerando somente a metade que me interessa - seria imposível achar o tal. E se ele fosse chinês? A China nunca foi minha prioridade de descoberta da parte do mundo que não conheço, logo, nunca nos encontraríamos. Sofrimentos e grandes desesperanças fizeram-me cética a respeito do amor e principalmente dos relacionamentos. Como era possível duas pessoas diferentes em tanto, conviverem eternamente sob um manto denominado amor? relacionamentos fugidíos pareciam ser a saída mais fácil, sem o comprometimento da alma. Mas, justamente por deixá-la de fora, chegava uma hora em que o vazio era maior e o mundo perdia a cor. Faltava alguma coisa. Mas eu achava que havia feito a minha opção.

No entanto, numa viagem, andando de carro com uma amiga, compras por fazer, coisas para arrumar em casa, eu o vi. Não o reconheci logo, sabia quem era ele, mas não o reconheci como haveria de ser. Saltamos do carro, sorrimos todos, falaram eles. Eu permaneci em um estado inquieto de emoção, que mais tarde se explicaria, quase muda, mascarando o meu rosto com um sorriso blasé que não me pertence. Pouco disse, enquanto os dois despejavam vinte anos de conversa e sentimentos acumulados em cima de mim, e eu olhava para um e para outro, sem compreender completamente o momento. “- É normal”, comentei a respeito, quando nos dirigíamos para almoçar num lugar que não chegava. Na verdade, não era normal, era possível que algum dia acontecesse, apesar de não acreditá-lo provável. Chuva, lama, mato e frio formavam a paisagem que eu enxergava de dentro do canto onde havia me encolhido, enquanto ouvia as mais belas palavras da minha vida. Nessas horas, devíamos ter um sistema de rewind cerebral, para lembrar exatamente tudo o que foi dito, sem perder nada e poder desfrutar novamente a emoção.

Após errar três vezes o caminho no jipe sacolejante, chegamos a um restaurante no meio do mato, sem luz elétrica, lareira acesa, lampiões e velas em cima das mesas de madeira e longos bancos com encosto almofadado. A dona, uma mineira simpática, sugeria as escolhas para o almoço e optamos por uma mistura brasileira-alemã: kassler com arroz e feijão, batatas coradas e legumes. Para acompanhar, um Anticuário tinto, retirado especialmente da adega, com o qual brindamos o dia, que seria assinalado na agenda do Mickey. Feitos os pedidos, ela desapareceu na cozinha, deixando-nos com seu marido, um sueco imigrado, amante do jazz e do ragtime, artesão de bonequinhos de chumbo, expostos numa vitrine de canto. Ele preparou coquetéis e escolheu a música, um lamento de Billie Holliday no som movido a bateria, para pontuar aquele quase monólogo. Afinal, “- esperava o quê de quem escreveu um texto durante dezessete anos, decorou na véspera e só teve quatro horas para falar?”diria ele alguns dias mais tarde.

Anoitecia e as velas foram acesas, a chuva fina e a névoa criavam a atmosfera de confissão, enquanto meu pensamento percorria os caminhos da vida e do retorno à noite. Passeava entre fantasia e realidade, entre passado e presente. Poucos outros momentos tiveram sobre mim um peso de realidade igual àquele e todos tinham sido perdas irrefutáveis. Daquela vez, era um ganho, mesmo que tudo se resumisse àquele encontro e a vida voltasse ao que era.

Eu já havia lido diversas vezes nesses livros de vida e auto-ajuda - acho-os bobos e previsíveis, mas leio de vez em quando - que determinados acontecimentos são decisivos para optarmos por um caminho. Nada acontece por acaso e tudo é um motivo para refletirmos e optarmos. De um modo geral, a minha tendência é acreditar nisso nos dias pares do mês e rir dessas teorias nos ímpares. Certa vez, ganhei meu mapa astral, encomendado a uma astróloga competente por uma amiga crédula e fiquei muito impressionada com a gravação de quem eu seria. Mas, passado o impacto inicial, a fita cassete foi para a gaveta, onde guardo tudo o que não serve para nada, mas evito jogar fora. Aquele era um dia quinze, o encontro queria dizer algo e eu teria vinte e quatro horas para assimilar.

O almoço terminou em fotografias, com a promessa de cópias e embarcamos novamente no jipe, para voltarmos à cidade. No caminho lamacento, enquanto a chuva continuava, caímos em buracos, limpamos os faróis e pensamos não chegar, com longos intervalos silenciosos entre os três, pensamentos soltos no impacto sobre nossas vidas. Tudo seria diferente dali para frente. Na despedida, os braços que me envolveram, num abraço de vinte anos, eram meus velhos conhecidos e senti, novamente, o aconchego proporcionado no passado. Respirei fundo e segui, sem força ou vontade de continuar o que havíamos ido fazer na cidade. As compras, com lojas já fechando, ficariam para outro dia e rapidamente arrumamos algumas coisas na casa, meio aturdidas, andando de um lado para outro, sem muita precisão. Era tarde e a descida da serra seria à noite. Saindo da cidade, voltei para vê-lo mais uma vez, com promessas de novos encontros e contatos. Retornamos ao Rio, ainda em estado de choque, música alta tocando no rádio, eu respondendo mecanicamente às perguntas de minha amiga, rindo de suas suposições, tentando minimizar o efeito do dia.

Ele havia sido meu primeiro amor. Aquele amor que significa o mundo quando temos quinze anos e a vida pela frente. Ele havia sido meu sonho, meu sol, minha esperança e descoberta. Havíamos namorado em duas ocasiões próximas e difíceis para mim, quando tive consciência das primeiras perdas em minha vida - meu avô, meu padrinho e ele mesmo, quando foi embora. Eu só teria um outro ano tão duro como aquele, muito tempo depois, quando perdi minha inocência e descobri, meio tarde, que o mundo não é cor-de-rosa. Durante anos, ele esteve presente em mim, guardado em um lugar só dele, iluminado pela luz de seu próprio brilho, ligeiramente magoado, porém único.

Naquela época, separamo-nos por todos os motivos e por nenhum. Éramos muito jovens, éramos teimosos, inexperientes e ainda seria preciso ganhar e perder muitas vezes para que as idéias de dois, pudessem permanecer diferentes, mas trilhando o mesmo caminho. Rasguei e queimei cartas e fotos, dei presentes recebidos, quis arrancar da memória o sujeito que havia sido uma promessa inteira e me entregara apenas metade. Mas, todas as vezes em que subi a serra e em que recordei aqueles anos, lá estava ele, absoluto, em seu lugar primeiro.

Eu precisava digerir a declaração recebida e, no fim da viagem, resolvemos jantar num italiano simpático, com bom vinho. O marido filósofo foi convocado e, pacientemente, ouviu-nos reproduzir várias vezes, do início ao fim, o dia e o encontro, enquanto atropelávamos palavras, gesticulando e fazendo brindes. Quando deixamos o restaurante, sentia-me meio embriagada, levei-os para casa, retornando pela Lagoa, olhando suas águas e temendo acordar no dia seguinte e descobrir que tudo não passara de um sonho.

O domingo ensolarado alcançou-me em cheio, com compromisso agendado - almoço com amigos sem assunto, numa tentativa inútil de me concentrar em meu presente. As conversas variadas ecoavam em minha cabeça, como se eu estivesse a um passo de desmaiar. Nunca desmaiei em minha vida, não que eu lembre, mas acredito que seja aquela sensação. Tudo fica meio preto ao redor, o foco diminui e os sons vão ficando distantes, como se as pessoas estivessem falando ao longe. A tarde foi embora com a mesma fúria das lembranças do dia anterior, e até o fim da noite eu tomei a decisão de voltar a vê-lo.

Meus sentimentos sempre foram melhor descritos no papel. Fica mais fácil, porque tenho tempo para pensar na palavra correta para exprimir o pensamento e não deixar margens a dúvidas. Nos tempos de novas e mais rápidas tecnologias de comunicação, resolvi enviar um e-mail para ele logo no dia seguinte. Eu não queria deixar o impacto inicial esmorecer, o susto motivador de sua torrente de palavras poderia se transformar em nada mais que um susto e tudo voltar ao que era. Depois do que ouvi, mais uma página tinha sido virada e eu tinha a intenção de continuar a ler - ou melhor, a escrever - aquela estória.

Passei a manhã e parte da tarde imaginando o texto internético. Deveria ser curto, não piegas, maduro e um pouco misterioso para instigar curiosidade e vontade. Deveria mostrar a minha surpresa e o meu agrado com o encontro, mas sem grandes concessões. Enviei a mensagem que resumia o meu pensamento e passei o resto do dia à espera de uma resposta. A expectativa me afligia e vi-me consultando a caixa postal de meia em meia hora, olhando fixo para o telefone, como se isso o fizesse tocar. “-E se mais alguém lesse? e se a mensagem, num desses acasos, não tivesse sido enviada corretamente? e se ele não consultasse sua caixa postal todos os dias? e se o provedor quebrasse? e se o endereço estivesse errado?” eu olhava pela janela de meu escritório e imaginava as cenas mais estapafúrdias, todas contra mim, me penalizando de alguma forma, como se o nosso contato nunca mais pudesse ser estabelecido, ele prisioneiro na Sibéria e eu, sem notícias, concluindo-o desinteressado. “- E se ele simplesmente não quisesse responder?”

Respondeu-me naquela madrugada, ele não dormia e eu não conseguia me concentrar no trabalho. Durante toda a semana, trocamos mensagens internéticas, expondo, a cada vez, um pouco mais de nós mesmos. Eu entrava e saía de reuniões e me pegava viajando no meio delas, lembrando de gestos, palavras e do abraço da despedida. Minhas manhãs eram dedicadas a consertos e reformas de utensílios da casa e compras de objetos necessários. Quanto mais eu me ocupava com tarefas variadas, mais pensava nos últimos dias. As pessoas falavam comigo e eu balançava a cabeça em compreensão do que sequer tinha ouvido. O toque do telefone me fazia saltar da cadeira e eu testava o celular para saber se ele estava funcionando.

No fim da semana, viajei novamente. Era preciso vê-lo, imperativo que os olhos se encontrassem, mãos pudessem se tocar, que a conversa fluísse, que falássemos os dois. “- Não precisa correr, não! -” ele disse, enquanto eu andava em direção ao portão para abrí-lo. Acabei dando uma corrida curta e ele emendou, “ - agora não precisa mais, já te vi.” Era o nosso segundo encontro, nosso segundo abraço e dessa vez, meu sorriso era nervoso, como meus gestos e meus passos. Ele não se sentia muito bem, tinha a aparência meio esverdeada, pela noite maldormida, pela semana ansiosa. Conversamos o que era possível, toda a vida em duas horas, grandes silêncios e muitas perguntas por fazer.

Um casal amigo estava comigo e quando ele foi embora, contei a nossa história, começo, meio, fim e recomeço, pois se eu tivera alguma dúvida até ali, ela se dissipara. Aquele era um recomeço, dezessete anos, muitas idas e muitas lágrimas depois.

Dias depois, na véspera de nos vermos mais uma vez, não dormi um sono bom e em breves momentos, sonhei com ele, com a cidade, com o futuro. Eram sonhos agitados, misturados, anjos e monstros lutavam em desigualdade. Ele chegava, dissipava meus temores e ficávamos sós. O terceiro abraço foi quente, promessa forte de dias futuros.



MPV – Maio 2000

Diario de Terra I - Carnaval 1998



Carnaval 1998 - Cancún, México

23 de fevereiro

Primeiro dia em Cancún com B e D. Fomos fazer um city tour sem graça que, na verdade, serviu para conhecer os hotéis da orla. Saímos quase no fim, mas antes de acabar. Nosso espírito de quero mais não nos permitiu continuar no ônibus engolindo abobrinhas sem sal.

Voltamos para o hotel e para a praia com mar azul, azul, lindo como sempre sonho com ele. Mergulhos de alma e coração, energizando para todo o ano de 98 e inspirando bons sentimentos sem deixá-los escondidos no fundo de algum lugar que já nem sei.

Reencontramos na praia o americano com nome do meu perfume descontinuado, conversou pouco conosco, antes de irmos para o jungle tour – passeio de jet ski com mergulho em "mares de coral”. Como disse B, realizei três vontades antigas hoje: pilotei o jet ski, mergulhei vendo o fundo do mar e entornei meio dedo e tequila que me queimou o estômago e me deixou sem fome o dia inteiro.

D, no passeio de jet ski, meio falante, meio muda de pavor, comportou-se mui bien como minha carona. No início, fiquei apreensiva, já que era a primeira vez que dirigia aquilo. Depois peguei o jeito e o negócio melhorou. Adorei.

No momento em que escrevo, estamos em um dos bares temáticos do hotel e, de acordo com B, somos as únicas que não usamos pulseiras de livre bebida. Os outros estrangeiros estão com as coleirinhas que os permiem beber até cair e nós pagamos cada cerveja consumida. – a preços turísticos. Passou por nós, um americano saradão, cantando "I'm a barbie girl", que cena! A noite, que ainda está só começando, não sabemos como será.

24 de fevereiro

Dia lindo, com sol forte e apenas algumas nuvens para embaciar o humor. Já fui dar minha saudação ao senhor mar, que hoje está bem mais forte que ontem. Bandeira vermelha nos impedindo de entrar. Molhei a mão e pedi à Iemanjá de todos os mares que nos proteja e nos dê a capacidade de sorrir sempre. Muito triste quem não consegue aproveitar os momentos maravilhosos que a vida proporciona, se apegando a coisas más. Sorrir sempre!

Aliás, foi sorrindo que, ontem, ao fim da tarde vimos um Peter Pan envelhecido entrar no bar em que estávamos – S – e passamos pela menina aprendendo a jogar tênis, com a quadra coalhada de bolinhas amarelas. Parecia um céu invertido, cheio de estrelas redondas, brilhando aleatoriamente para quem passasse.

Após o banho, um périplo by bus até o P’s, restaurante mexicano para turista ver. Garçons que pregam peças, danças e cantorias, tequila e margaritas, cerveja Sol e tudo a que temos direito. Serviço meio demorado para a fome que estávamos e para a ansiedade pelo muito por fazer.

De lá, após brigar com meu sono e ele quase vencer por instantes, fomos parar numa fila ventosa e fria em frente à LB. Não conseguimos ficar. A fila não andava, o frio congelava os ossos e resolvemos continuar em frente. Chegamos à CB, uma super disco, cheia de gente dançando sem parar, com alto astral. Cerveja Sol, conversas e encontros com outros hóspedes de nosso hotel.

A impressão que tenho é que Cancún virou território norte-americano. Muita animação e dança até o joelho doer. Após a dor, mais dança. Não dá para ficar parada. Parada, durmo. E já combinamos, as três, dormir mesmo, só no Rio, quando voltarmos. À saída da CB, tentamos o SF’s, um bar dançante já desértico àquela hora. Dúvidas sobre o que fazer e o sono, rei e senhor, foi profundamente aproveitado.

Hoje, terça-feira, 24, café mais tarde e uma dúvida intensa sobre o que fazer e aonde ir. Difícil contentar todos ao mesmo tempo. Pela hora tardia, resolvemos descansar na praia e reservar o carro para Tulúm e Xel-Há para quinta-feira. Amanhã já combinamos o passeio a Cozumel.

D, B e eu andamos, sem rumo, pela areia, voltamos e agora estamos estirados. Todos no sol, eu mais ou menos à sombra. Penso. Todos me perguntam o que escrevo. Um diário de terra. Impressões. Com esse mar à nossa frente e a música techno de um mexican guy chato, gritando ao microfone, fica mais difícil deixar o pensamento fluir.

Mas ele viaja. De vez em quando, volta ao Brasil, começa lá por cima e vai descendo, sempre pelo litoral, até chegar ao Rio, cidade do coração. Vai ao Sul e retorna ao Caribe. Afinal, estou viva e a vida acontece aqui e agora. Olho ao redor e fotografo com a memória o quadro, como aprendi a fazer, anos atrás, naquela janela em San Diego.

À minha frente, um sujeito está pendurado num parapente, puxado por uma lancha, planando lá no alto. Imagino o pensamento que existe lá em cima, preso apenas por um fio. Como já me senti. Presa por um fio. Não mais. Agora, pés, mãos, corpo e alma me levam pela vida para aproveitar os sorrisos proporcionados. Muito bom.

Mais tarde, já na piscina quilométrica do hotel, B solicita-me que faça a anotação que Blade Runner está à nossa frente na outra margem. Sinto um interesse disfarçado. Deixa o Blade Runner aparecer pela frente para ver se o tubarão carioca com sangue alagoano não ataca. Ataca, tira pedaço e só deixa os ossinhos não digeridos.

25 de fevereiro

Fim do dia no ferry boat que nos levará de volta a Cancún, após um dia de muita água e peixes em Cozumel. O entardecer é lindo, mas hoje fica para depois. Falta contar a noite de ontem, terça-feira.

Depois da piscina, B, D e eu fomos ao shopping ver coisas. Passeamos e trocamos dinheiro, além de fazermos um lanche rápido. Aprendi, no primeiro dia, que as meninas não comem e eu sinto fome nas horas certas. Isso quer dizer que passei fome nos dois primeiros dias, porque nunca estávamos em algum lugar onde eu pudesse me alimentar nas horas costumeiras. A partir do meu aprendizado, passei a aproveitar qualquer momento em que houvesse onde e o quê comer, para não ficar com fome mais tarde.

De volta ao hotel, nos arrumamos para o jantar – oba, mais comida! – Jantamos no S’s, restaurante italiano. Fomos nós três e outros quatro amigos que estavam viajando conosco. Como eu já havia me fartado no lanche, pedi apenas um minestrone, bem gostoso, por sinal. De lá, partimos para o SF’s, onde colocamos no pulso, uma pulseira que, mais tarde mostrou-se quase impossível de ser retirada, e compramos um copo longo e engraçado que consegui guardar na mochila.

Depois de lá, B, D e eu voltamos ao S’s, o mesmo da primeira noite em Cancún, ainda não relatada. Novamente, não gostamos do local. Por que fomos, então? Dúvidas sobre aonde ir e acabamos na fila da D’O, onde reencontramos o restante de nosso grupo. E B encontrou L, o meu perfume, afinal existente. Após uma espera não muito longa, mas eterna para a nossa curta paciência, entramos no templo da dança e conseguimos um lugar privilegiado, só nosso, onde nossos corpos bailavam sozinhos ao som das músicas.

O sono estava estacionado do lado e fora, à nossa espera, enquanto a estória que não existia, começava a se formar lá dentro. Não dá para falar tudo, então sugiro a música “samedi soir sur la tèrre” de Francis Cabrel, para ilustrar a noite caribenha. Fomos dormir às quatro e duas horas depois, a telefonista do hotel martelava nossos ouvidos para recomeçarmos o dia.

Sonâmbulas, mas decididas, fomos ao café e às 7h30min entramos em nosso transporte para Cozumel. No trajeto de ida, a surpresa, pela segunda vez. Na verdade, o que compramos não era aquilo mesmo. Mais dólares para o passeio completo. Fomos para um barco que nos levou para três recifes de coral. Milhares de peixes de cores indescritíveis e o mergulho de superfície, com máscara. A visão ao vivo e a cores de uma moréia, pertinho de nós. Sensação maravilhosa e experiência fantástica. Amei. No barco, comida mata-fome cozinhada e servida pela tripulação e uma soneca ao balanço das ondas. Acordei ao som da macarena. Onde estou?

O mar é um mundo à parte. Desconhecido e surpreendente, exerce um fascínio sempre crescente e um sentimento de aconchego e compreensão. É como se ele me abraçasse e me recebesse com um sorriso amigo. A sensação quando o vejo e o toco, quando mergulho e furo suas ondas é que ele vai buscar energia no centro da existência e me transmite naquele momento de contato. É a renovação, a continuação e o infinito.

Noite de quarta-feira – fomos os sete jantar no PO’B, um bar restaurante de New Orleans, com música e garçons piadistas. Aliás, parece ser qualidade fundamental para a profissão por aqui. Piadas, risos, intimidade e dança. Porque todos dançam. Sobem no balcão e realizam coreografias ensaiadas. De lá fomos a vários locais, e terminamos na CB, a que mais gostei, entre todas. B e D sonolentas, pulga dançando, voltamos para o hotel mais cedo.

26 de fevereiro

Quinta-feira, fomos o sete alugar dois carros para irmos ver as ruínas de Tulúm. Estrada ruim, levamos hora e meia para chegarmos. À beira do mar, aquelas pedras que já significaram vida para alguém, estão imponentes, esperando a nossa visita. De acordo com as informações, a cidade deixou de ter vida há 450 anos. Praticamente o mesmo tempo de existência do Brasil. Um lugar morria, outro nascia.

De lá, fomos visitar Xel-Ha, um parque com uma lagoa construída com ligação para o mar. Nadávamos entre os peixes e descansávamos nas imensas bóias, onde nos “amarramos” umas às outras, sendo levadas pela correnteza. Muito riso e diversão.

Quando nos enchemos das bóias, tentamos furar os pés num caminho pedregoso até o mirante no extremo da lagoa. Parada para fotos e no retorno, almoço em Playa Del Carmem, um restaurante mexicano com comida apenas razoável. Ainda não comi nada que me tirasse o fôlego, em matéria de sabor, ou de pimenta. Os restaurantes são turísticos, com ambiente agradável e visual simpático, mas o descuido com a qualidade da comida tem sido imperdoável.

Na volta à Cancún, à noite, pegamos uma estrada em obras e esburacada, sem iluminação, com retas intermináveis, promovendo o sono no carro. B dormiu de verdade, se não me engano, roncou e babou também, enquanto D tentava, num esforço sobre-humano, manter-se acordada e conversando comigo, para que eu não dormisse ao volante.

No hotel, exaustas, uma soneca de quarenta minutos e a ordem imperativa para que eu entrasse no banho, sob pena de ser abandonada sozinha no quarto. Fomos ver do que exatamente se tratava a “foam party”, para a qual havíamos sido convidadas pelos americanos. Não dá para descrever o que é para quem nunca viu pessoalmente. O pior quadro pintado não chega perto do que presenciamos pelo vidro da boate. Homens e mulheres ensopados de espuma e água até os olhos, bebendo e dançando à noite, numa quinta-feira (poderia ser qualquer noite, na realidade), esfregando espuma um no outro e achando a maior graça nisso. Recebeu o maior cocar para o programão de índio. Obviamente, as três moçoilas protagonistas desse relato de viagem, arrumadinhas em seus vestidinhos, fizemos meia-volta e fomos procurar outras paragens menos indígenas.

Estivemos em alguns lugares que não nos cativou e fomos parar na D’O, onde ficamos dançando e nos divertindo, até que começou, sem aviso prévio para nós, o segundo programão de índio da noite – A Noite do Biquini. Mulheres mostrando o corpo em micro-biquinis e contorcionismos de quem assina o playboy channel. Os homens presentes, levados de volta a idade da pedra (chegaram a sair??) gritavam, assoviavam, batiam palmas, abriam a boca em expressão de pasmo, filmavam e fotografavam.

Um delírio ululante que durou uma hora, distribuiu prêmios para as três primeiras colocadas – sim, era um concurso e sim, havia júri – escolhidas pela pressão pública e pela onda politicamente correta, já que eram de nacionalidades diferentes: mexicana, canadense, americana. Respirei aliviada por não haver nenhuma representante tupiniquim pagando aquele mico para gringo ver.

Depois disso, o melhor era ir dormir. A noite de quinta-feira ficou conhecida como a noite do orangotango, já não era mais mico.

27 de fevereiro

Sexta-feira, pegamos o carro para passar o dia em Playa Del Carmem. Andamos pela areia, até encontrarmos um bar confortável e é onde escrevo no momento, com as pernas em cima da mesa e olhando para esse mar com várias tonalidades de azul, naquela moleza pré-menstrual.

Depois do descanso e da preguiça, fomos comer uma pizza em um restaurante na 5ª Avenida. Adeus à Búzios dos anos 80, charmoso balneário caribenho que infelizmente não conhecemos por mais tempo. Novamente, aquela estrada à noite, muito contra a minha vontade, mas o lugar aprazível era como um ímã, nos impedindo de partir.

De volta ao hotel, somente tempo para o banho e saímos para jantar no HBS, último brinde de tequila e música alta. Pela primeira vez na semana, a noite estava quente e a brisa também era quente. Fomos dançar na D’O, mas a faixa etária havia abaixado sensivelmente. O que estava acontecendo? Em seguida, em um dos andares mais altos, uma mulher embriagada resolveu que já era hora de ficar pelada e tirou tudo, para nosso escândalo. Outra cena de playboy channel que no Rio, pelo menos onde frequentamos, não costumamos assistir. O garçon nos explicou que aquela cena não era nada perto do que aconteceria a partir daquele sábado, com o início do “spring break” americano. Ah! Era isso!

As desnudas continuaram seu show, os garçons fingindo que impediam, a galera aos uivos (maracanã perderia feio, na disputa), pedindo mais, mas já não havia lugar nem para o espanto, nem para a curiosidade. Cansou. Abandonei o barco e as meninas ainda ficaram mais um pouco para as últimas despedidas.

28 de fevereiro

Último dia, sábado, tiramos a manhã para arrastarmos malas de um lado para o outro, fechar a conta e fazermos compras. Voltamos para o hotel a tempo da minha despedida de Netuno, último mergulho naquele mar azul e ainda preguiçamos na piscina.

A invasão do hotel e da cidade pelos teenagers americanos foi contundente e nos fez agradecer o nosso carnaval ter caído uma semana antes de março, início do spring break dos bárbaros.

Últimos momentos de pernas para o ar, algumas fotos, o banho e o descanso no clube, alta traição das meninas, ao me fotografarem sonecando e o retorno à casa. A viagem, apesar de longa, não foi sentida, tendo eu dormido profundamente no avião desconfortável, completamente vencida pela exaustão.




MPV, março 1998

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Diário de Terra II - Carnaval 1999



Carnaval 1999 - Tiradentes, MG

Introdução


Cheguei cansada e faminta ao Manolo, onde os três já me esperavam para combinarmos o carnaval, faltavam duas semanas e ainda não havíamos decidido se iríamos para o sul, para o norte ou oeste do país, sendo leste só água.

Oi...tô com fome, tô com sede. Sentei, para levantar na mesma hora, tenho que lavar as mãos, a vontade era de me enfiar debaixo de um chuveiro, com água bem fria. E aí? Praonde a gente vai dessa vez? Nós resolvemos que vamos para Tiradentes, voltamos no domingo para desfilar na Portela, fantasiados de torresmo e voltamos novamente para Minas. Olhei para os três, rindo, tá bom, sério, qual é o programa? É esse mesmo. A gente vai e volta e vai de novo. Dessa vez olhei séria, vocês tão brincando? Risos... Não, é isso mesmo. Vamos voltar só para desfilar na Portela.

Achei que era alucinação minha, mas eles falavam a sério. Depois de tanta reserva, marca-desmarca, pesquisas, pedidos, o programa estava feito, ali, na minha frente. Um chopp e uma pizza, por favor. Liga para organizadora, medidas de todos, pagamento da fantasia, encontro, detalhes. Ah! E reserva a pousada tipo hotel-fazenda, lá em Tiradentes. Mais uma reserva...


Quatro dias de Folia

Domingo de carnaval em Tiradentes, com R, Z e PB. Enquanto os três se divertem nos jogos disponíveis na pousada, encontro-me ao sol, pensando na vida e escrevendo o Diário de Terra II.

Ontem mesmo, no almoço, conversávamos sobre emoções, atitudes, relacionamentos, essas coisas que nos movem e fazem nossas conversas femininas girarem sozinhas. Como os homens têm pouca tolerância ao assunto! E no entanto, eles são parte da roda que gira por si mesma.

A combinação carnavalesca deste ano é algo digno dos 20, a vinda a Tiradentes, descida para o Rio para desfilarmos na Portela, com outros 40 amigos e conhecidos, retorno novamente quando acordarmos e descida final na quarta-feira.

Chegamos em Tiradentes na sexta, ou melhor, já sábado de madrugada, após uma viagem divertida, com muita música e os critérios de escolha variando conforme a vez. PB, o infrator, mudava as regras do jogo a cada volta. No início era uma música, aumentamos para quatro por pessoa, mas como ele nunca sabia a ordem das músicas no CD, acabávamos ouvindo muito de cada uma. R resolveu tomar conta e a guerra ficou acirrada. Ela adiantava, ele voltava ao início, ela mudava de novo, ele voltava mais uma vez e assim ia até que ninguém aguentava mais.

Em Tiradentes, fomos direto ao centro histórico e ali começou o período do bicho tá pegando, the animal is taking, getting, picking, catching, whatever, que nos acompanhou por todo o período. Reinava uma folia adolescente na pracinha, onde ficamos mexendo as pernas até às três e meia, depois de termos levado o coice do king-kong plantonista do banheiro. Minha revolta foi de tal forma que, mesmo anti-violência, naquela hora, tudo o que eu queria era ter mais um metro de altura e de largura. Engolimos o desaforo e procuramos outro bar, para as cervejas da madrugada. No fim, fomos para a pousada, já rendidos ao sono que seria sempre breve pelos próximos dias.

Sábado, fomos dar uma volta e acabamos dentro da Maria Fumaça, que leva meia hora para vencer os 6 quilômetros até São João Del-Rey. Em São João, R e eu fomos ver o Teatro Municipal, onde tivemos o prazer de conversar com o Secretário de Cultura da cidade, senhor já de idade e ainda apaixonado pela história e as nossas coisas. Ele nos explicou as dificuldades que enfrenta para conseguir restaurar o teatro, de 1800 e qualquer coisa, muito mexido e em mal estado de conservação.

Enquanto isso, do lado de fora, os dois rapazes, nossos dignos acompanhantes, eram “espreiados” com tinta prateada e se recusaram a contar como a pintura havia sucedido. Coisas dos homens, cheios de mistérios.

Pegamos a Fumaça de volta, R e eu conversando, enquanto os dois dormiam e babavam, tentamos tirar uma foto, mas o Z deve ter adivinhado, tal a forma que amarrou a máquina ao próprio pulso. Em Tiradentes fomos em busca de água, numa prometida cachoeira. Encontramos longa andança e muita lama no caminho. Quando, enfim, chegamos, a cachoeira era bica e os espelhos d’água eram banheirinhas. Sedenta e cheia de calor, quase desisti, mas acreditei e quando subimos mais um pouco, achamos um laguinho divino que foi só nosso pela próxima hora.

O mergulho naquela água fria, de fonte limpa, ajudou a revitalizar corpo e espírito. A volta ao carro foi mais fácil e seguimos caminho até uma estalagem para almoçarmos. Feijão tropeiro, tutu, tudo a que temos direito, estando em Minas. Foi o almoço da “conferência”, como o Z chamou a nossa conversa sobre emoções, que acabou se transformando em vida de PB.

Um descanso providencial nos deixou acordados novamente para as festas da noite. Tequila, limão e sal para os foliões, no quarto masculino, promessas de uma noite animada e risonha. Encontramos uma praça cheia de adolescentes e gente feia, culminando no desdentado que sorriu para R e ela quase desmaiou de susto, mas não foi impedimento para a folia entre nós. Outro amigo nos encontrou também, e por algum tempo ficamos os cinco, juntos, dançando.

Choveu um pouco e nos abrigamos num restaurante onde, às duas da manhã, resolvemos comer alguma coisa. Uma hora mais tarde, R e eu ficamos na pousada, enquanto os dois guerreiros seguiam em busca de mais ação em São João. Disseram-nos que voltaram às 6 horas, cheios de álcool e lanças inteiras.

A viagem no domingo, para o desfile, foi tranquila. Levamos menos de quatro horas, Z dirigindo e mirando os buracos na estrada para amaciar o carro novo de PB. A cada um que acertava, ouvíamos os gemidos e lamentos do dono da máquina. Mas o melhor foi o próprio PB, correndo de chinelos, cheio de coragem, enfrentando caminhão, em busca da calota perdida. Pedimos bis.

Chegamos no Rio e fomos almoçar em minha casa, para não perdermos muito tempo e buscarmos as fantasias que estavam lá. Foi a grande sorte, pois Z esqueceu a chave de sua casa em Tiradentes e não teve como entrar. Se a fantasia estivesse lá dentro, quebrava ou ficava quebrado.

Mais tarde, A, S, os dois e J foram nos encontrar, com tequila, whisky, pilhas para a noite que prometia. A ida a pé até o metrô, nós fantasiados, foi bárbara. As pessoas nos paravam na rua, perguntavam qual a escola, diziam boa sorte, todos sorriam. A fantasia era uma estrutura nos ombros, com panos pendurados, alegorias imitando linguiças, panos de prato, biquini por baixo e na cabeça, um imenso chapéu, com folhas de couve e um leitãozinho. O motivo era a cozinha mineira. Tudo absolutamente horroroso, mas fazia um efeito interessante de longe, no conjunto e sob os holofotes do sambódromo.


Saltamos na Central e fomos andando até a concentração, onde encontramos muitos dos nossos. Foi uma farra indescritível, muito riso e alegria contagiante. No meio da farra, o flash da noite, visto por mim e devidamente relatado a R, mas não dá para registrar para a posteridade. Esse flash vai embora comigo e com quem mais sabe.

Normas rígidas imperavam na concentração. Não podíamos beber dentro do cordão, o que só incentivou Z a infringir e sumir por bastante tempo. Disse-nos que tentou ver o esquenta da bateria. PB sambava para todos os lados e J estava apavorada de se perder de todos. S alegre, A e R amorosos. Éramos 45 pessoas minimamente conhecidas na ala.

Por volta das 23 horas, o foguetório deu início ao desfile. A emoção começou, o coração pulsou mais forte, os carros começaram a andar e as alas eram revistadas, fantasias inteiras e nenhuma bebida na mão. Quando fizemos a curva, da presidente vargas para o sambódromo, aquele soco no peito, a multidão nas arquibancadas, a festa, o batuque, a vida parou ali, transformando sonho em realidade, encantando e marcando para sempre aquele momento inesquecível.

Durante o desfile, idas e vindas, diagonais no samba, dança com um e com todos, alegria, muita alegria, acabando 30 minutos depois. Como é rápido atravessar aquela avenida. Corpos suados, mentes em delírio, o encontro no fim, o despir das fantasias, peitos e pernas à mostra, a caminhada até o metrô de volta à casa.

Na estação, à espera do trem, todos jogados no chão, quase nus, acabados, emocionados. Dentro do vagão, muitas fotos da máquina de sei-lá-quem, que ainda hei de ver. Em casa, alguns tomaram banho, outros não, fomos para uma festa que só descobri ter direito a piscina quando lá cheguei. Já estava fresca e não fiquei muito tempo. Z foi comigo, R com A, PB, trêbado, solo, S e J idem. Perto das três, achei que já era hora de sair de campo e encontrar meus sonhos.

No dia seguinte, segunda-feira, acordei pensativa, como haveria de ficar pelos próximos dois dias. Por volta de uma da tarde, começamos a voltar a Minas. Era realmente uma aventura digna dos 20 anos e a impressão que eu tenho é que estávamos por lá. A viagem foi tranquila, sem trânsito e fomos direto para a praça. Estávamos famintos, PB queria almoçar churrasco de seis reais na estrada, mas conseguimos convencê-lo que a comida mineira cairia melhor. Almoçamos no “Vai Nessa”, não lembro o nome do restaurante, apenas do garçom que nos atendia e repetia essa frase para qualquer coisa que disséssemos.

Demos uma volta pela praça, tomamos café e chegamos no hotel já noite. Dormimos um bocado e lá pelas dez, decidimos sair para a folia. Desta vez, a tequila pré-farra foi no nosso quarto, pela absoluta impossibilidade de entrarmos nos aposentos pebelinos. Isso me faz recordar que não posso deixar de mencionar os blurps, hics, cács e grogues, emitidos em sinfonia pelo nosso amigo PB. Nossa viagem ficou marcada pelas músicas, das quais falarei mais tarde e pelos “sons” de PB.

Ficamos um pouco na varanda do ping-pong, tentando ver os raios do temporal que caía longe, bebendo tequila e falando bobagem. Como chovia muito, resolvemos ir a um bar com música ao vivo que já tínhamos visto à tarde. Conseguimos uma mesa e ficamos decidindo os drinks e o que comer. Dançamos um pouco e rimos muito, muitas estórias e Z resolvendo que éramos filhos de Baby, Zabelê, Pedro Baby, Riroca e Nanashara. R, como sempre muito implicante, imediatamente criou a corruptela de Bundalelê e Z, troféu “teasing” de todos os tempos, contra-atacou, corrompendo a Riroca para Raralho.

De certa forma, incorporamos as personagens e o auge foi a entrada de uma mulher com uma peruca completamente espetada, de diversas cores. Mamãe, gritou Zabelê, de braços abertos para a figura, mas sem que ela o visse. Depois de alguma folia, R que havia passado o dia suspirando, saudosa e feliz, rendeu-se aos encantos de Morfeu e largou-se, dormindo no sofá. Z, sumiu por bom tempo, PB e eu conversamos até que ele resolveu dar seus tiros, sem os quais não conseguia passar uma noite. Com o retorno de um misterioso Zabelê, resolvemos ir para o hotel. Ele foi nos deixar, contando que havia ido investigar o outro bar, onde rolava o show de uma cantora e poderia ser um bom programa para a noite seguinte.

Depois de nos deixar no hotel, voltou para pegar PB. O resto da noite só eles sabem. E homens têm aquele pacto do “ninguém ronca”- estória do reveillón passado em Angra.

Terça-feira de carnaval, acordei com uma dor de cabeça que não tinha forma de passar. R falou que era ressaca, eu acho que era das lentes de contato. Pedi a ela para não comentar nada com eles, no entanto, a primeira pergunta que PB fez, que cara é essa? devia estar realmente com uma expressão horrível. Ficamos na piscina, PB foi dormir e Z foi ver móveis pela cidade. Lá pelas tantas, ele já de volta e PB desperto, fomos passear pela cidade. Andamos a pé pelas ruas, vimos a Matriz, tiramos fotos, entramos na casa do inconfidente Padre Toledo. Visitamos as igrejas dos pardos e dos escravos, onde PB encontrou uma amiga do Rio. Mais passeios e fomos fazer a reserva para o show no bar descoberto na noite anterior, muito interessante, decoração charmosa, linda vista, com o dono nos contando e mostrando, com orgulho, a sua casa.

Almoçamos na mesma rua e conversávamos sobre vida e emoções quando houve uma das grandes cenas da viagem. Z falava sobre mulheres que ficam famosas e dão o pé na bunda de seus maridos, PB comentou sobre segundos casamentos que dão certo e eu brinquei, mostrando com os dedos que, no meu caso, seria o terceiro. Ele, então, para mim, num ato falho disse - Você, depois que ficou famosa, deu a b... e... todos perceberam o que ele havia dito, eu exclamei, PB, qualé, R gargalhou e Z quase caiu no chão de tanto rir. Não parávamos nunca mais. Até agora, quando lembro, volto a rir.

Depois do almoço, fomos andar pela praça, eles queriam se enfiar num bloco que dava voltas, nós duas queríamos paz, marcamos uma hora de encontro e fomos para o carro. Pouco tempo depois, chegaram os dois e fomos de volta à pousada, para descansarmos um pouco antes da noite.

Voltamos à cidade e fomos para o bar, já cheio à hora que chegamos. Fomos para a nossa mesa reservada e R e eu bebemos whisky, enquanto eles bebiam cerveja e outros drinks. Com o nosso pedido, Z descreveu como seria a cena de nosso retorno à pousada bêbadas, de gatinhas, sem blusa e descalças, sapatos numa mão e cigarro noutra. Viagem sideral.

PB pediu um "ovni" de coloração azul que rendeu o outro grande acontecimento de risos. Entretido no show e de costas para a mesa, não viu quando R pegou o seu copo e escondeu, Z encheu outro copo apenas com a bebida azul (sem álcool), eu coloquei o copo no pratinho original, R o canudinho no lugar e ficamos à espera. Z teve um ataque de risos que o obrigou a levantar da mesa, nós duas rimos muito e PB não entendia nada. Lá pelas tantas, olhou o copo e fez uma cara de grande reconhecimento. Mas ele achou que tivéssemos bebido o drink. Pegou o copo e começou a beber o que tinha no copo, sem reparar que havíamos trocado. Quando ele acabou com a bebida, Z falou que gostaria de ter provado o drink e R esticou o copo original, serve esse aqui? Foi, então, que PB percebeu o que havíamos feito. Gargalhadas quase atrapalharam o show que já havia começado. Na saída do bar, depois do show, o encontro com um amigo efusivo, cheio de alegria por nos ver lá.

Fomos para outro bar, mas estava devagar para uma terça-feira de carnaval, ou melhor, para qualquer dia da vida, pois um bar com música ao vivo que às duas da manhã manda um “sentimental eu sou...” é dose. Z ficou na praça, PB foi nos deixar na pousada. As duas dormimos mais de quatro horas, pela primeira vez em cinco dias.

A quarta-feira amanheceu tranquila, muita gente indo embora cedo, nós demorando a acordar. Eles quase perderam o café, eu já havia batido na porta, mas não ouvia resposta, R, então, perguntou se eu achava bom que ela fosse “esmurrar” a porta do quarto e eu disse sim, eles resolvam depois se levantam ou não. Chegaram na última badalada e ainda conseguiram comer conosco. R, Z e eu fomos para a piscina, enquanto um exausto PB voltou para a cama.

Mudamos de lado na piscina, R e eu no sol, Z na espreguiçadeira e na sombra, travesseiro na cabeça, uma moleza que fazia gosto. Comentei que achava ter sido mordida por pulga no quarto, ele disse que pulga não existia mais e R, tem certeza? Pulga pode ser um animal em extinção, mas eu vejo sempre por aí...Como ficou marcado em nossa temporada carnavalesca, as mulheres e principalmente as muito amigas, têm uma linguagem própria que somente nós entendemos. Para desespero e profunda curiosidade deles, além da linguagem verbal específica, conseguimos estabelecer longos diálogos telepáticos, emitindo opiniões e tomando decisões sobre o que, com quem, como, onde e quando fazer qualquer coisa.

Mais tarde, acordamos PB, fomos para a cidade, vimos uma outra pousada que também fica afastada, fomos para a loja de móveis, onde Z encomendou sua mesa, palpitamos, vimos o armário que podia ser um bar. Voltamos para a pousada, tomamos banho e arrumamos as coisas para seguirmos viagem. Resolvemos almoçar em Tiradentes e só saímos de lá às 18 horas.

Durante o almoço, retrospectiva dos dias, as melhores piadas, R e eu nos olhamos e pensamos sobre as estórias que só nós sabemos, eles não entenderam, foi mais engraçado ainda, pois não sabiam do que ríamos. Lá vêm vocês novamente com essa lingua que a gente não entende...Rimos mais, enumeramos as situações, a fama, o drink, filhos de Baby. Falamos também sobre as músicas do período, parque da juraci e lenha, resposta, give me love e ainda lembro, patience, sweetest thing, linha do equador e pierrot, olodum, nando reis, titãs, ciclete e outras, muitas outras..

O retorno foi como qualquer outro, cansados, mas felizes. R e eu fomos comer pizza na Cobal, falamos mais e mais. O assunto, inesgotável como a própria vida, enquanto nos dispomos a vivê-la e não apenas contemplá-la. Emoções, sentimentos, ações, a vida encantada.

Até o próximo carnaval.

MPV - março 1999

O amigo de meu Pai

Mais uma tarde à frente do computador, minha mesa na última sala do instituto de cultura, onde eu trabalhava já há alguns anos. Sentada de frente para a janela, assistia ao vai e vem frenético dos carros, dos ônibus, do trânsito na rua Primeiro de Março, no centro do Rio. Uma distração da burocracia diária, um passeio para o espírito.

De lá, assisti a passeatas, discussões, atropelamentos, emissoras de tv e rádio brigando por um espaço em frente ao prédio, quando havia julgamentos que mobilizavam o público. Mobilizavam, não, mais interessavam, como uma novela que se desenrolava ao vivo. Uma selva urbana das melhores e eu de camarote.

Como era um instituto com associados, as visitas eram constantes. Alguns pedidos, alguns passatempos, conversas que o tempo levava embora. Alguns funcionários, atendíamos, ouvíamos, conversávamos.

Eu olhava pela janela,distraída, naquela tarde ensolarada, ar condicionado no máximo, quando ouvi aquele tão conhecido e carinhoso cumprimento, quase diário: “oi, minha filha.” “oi!” – levantei-me. Era ele, o amigo de meu pai, que se tornara meu amigo, meu tio, meu companheiro de trabalho, grande conversador e contador de causos.

Ele vinha com uma novidade e um sorriso de menino que iluminava seu rosto. Havia feito, gratuitamente, na clínica top de um amigo, um check-up completo. Passou um dia na clínica, milhares de exames e trazia uma pasta com todos os resultados, mostrados um a um, após o detalhamento das instalações da clínica, maravilhosas.

A partir do momento de sua chegada, a tarde estava perdida para o trabalho, porque conversaríamos muito, mas ganha para a vida, que é o que na verdade importa. Todos os que entraram na sala, naquela tarde, com diferentes graus de intimidade, viram os resultados dos exames feitos na clínica top.

Como algo tão prosaico como a realização de exames, poderia criar aquele sorriso contagiante de inocência perdurada?

Ele era assessor especial da presidência do instituto, por isso estava sempre por lá. Levava amigos, apresentava, ia sozinho, mas sempre ia. E quando aparecia, como naquela tarde, o dia mudava de cor. Os problemas desapareciam e eu ficava horas ouvindo os causos que começavam lá atrás, na Presidência da República e passava pelos anos da ESG, do Lions, do ECC, do TJ e de muitas outras siglas. Eram causos e amigos que ele ia juntando pela vida, sempre com o sorriso de menino.

A última vez que vi esse sorriso, ele estava no hospital. Casa cheia, entrava um, saía outro, como sempre fez. Despreocupado, como se aquele momento fosse mais um, entre todos, que entraria para o rol da estórias a serem contadas mais tarde.

Não o vi mais. Para sempre, até nos reencontrarmos na Casa do Pai, terei a lembrança do sorriso-menino, despreocupado, inocente, a iluminar meus dias tristes, o amigo de meu pai, meu companheiro de trabalho, meu tio, meu amigo.

Muitas saudades até lá.

MPV - novembro 2007

Mario de Andrade - Girassol da Madrugada

...”Eu sei que tu sabes o que eu nem sei se tu sabes,
Em ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos,
És grande por demais para que sejas só felicidade!
és tudo o que eu aceito que me sejas
Só pra que o sono passe, e me acordares
Com a aurora incalculavelmente mansa do sorriso.

Não abandonarei jamais de-noite as tuas carícias,
De-dia não seremos nada e as ambições convulsivas
Nos turbilhonarão com as malícias da poeira
Em que o sol chapeará torvelins uniformes.

E voltarei sempre de-noite às tuas carícias,
E serão búzios e bumbas e tripúdios invisíveis
Porque a Divindade muito naturalmente virá.
Agressiva Ela virá sentar em nosso teto,
E seus monstruosos pés pesarão sobre nossas cabeças,
de-noite, sobre nossas cabeças inutilizadas pelo amor...”

Fernando Pessoa - Colhe o Dia

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir por o que está perto -
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Sentimento de Mim

Tudo o que fiz, fiz por amor.
Todas as decisões que tomei, por amor.
Todos os caminhos percorridos, por amor.
Todas as mudanças, por amor.
Idas e vindas, amor.
Erros e acertos, amor.
Acertos finitos, por amor.
Enquanto durasse, o amor.

MPV - outubro 2007