quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Ilustre Desconhecido

Dario era homem precavido. Só saía de casa depois de se certificar sobre o tempo, levava sempre um dinheiro a mais para uma emergência ou um assalto. Junto da identidade, a carteira com o tipo sangüíneo e o telefone do único parente vivo: um sobrinho em Volta Redonda. Ainda bem que o tempo estava firme, seria menos penosa a fila da aposentadoria sem chuva. Saiu de casa antes das seis, para ser um dos primeiros. Pegou o ônibus e, ao saltar, quase levou um tombo, não estava enxergando direito. Dois passos, tropeçou num buraco e tentou se apoiar em um muro que não existia. Caiu sentado na calçada. Algumas pessoas passaram por ele, sem dar atenção. Outra reclamou que o velho estava bem no meio da calçada, atrapalhando o caminho. Dois carregadores chegaram perto e perguntaram o que ele sentia. Dario tentou responder, abriu a boca, mas cuspiu sangue. Os carregadores recuaram enojados. Uma senhora que passava disse para eles tomarem cuidado, os bêbados costumam ser violentos.

Dario se estendeu na calçada, respirando com dificuldade. Saía um filete de sangue pelo nariz. Os carregadores se agacharam e abriram seu paletó, afrouxando a gravata. Dario apontava para o bolso com a carteira. Eles encontraram o dinheiro e saíram dizendo que iam comprar remédio e água. Um menino batia uma bola e quase acertou Dario, um senhor de óculos desviou e disse que o velho estava morrendo. Foi um corre-corre. Pessoas querendo ver, outras já tinham visto. Uma gorda, com ares de enfermeira, se aproximou, abriu os braços e, com uma força descomunal, arrancou o paletó de Dario, desapertando-o. Duas prostitutas lutavam pelo privilégio de segurar o paletó, que acabaram rasgando na altura do bolso. A carteira caiu no bueiro. Os olhos de Dario ficaram vidrados e seu corpo sacudiu todo em espasmos irregulares e contínuos. A multidão recuou horrorizada. As prostitutas saíram correndo, quando ouviram a sirene da polícia, cada uma com um pedaço do paletó.

O guardas se aproximaram e fizeram um cordão isolando o cadáver que, após o último espasmo, havia ficado torto, cabeça para frente e corpo para trás. Alguém trouxe um jornal para cobrí-lo, mas ventava e o jornal foi levado pelos ares. Colocaram quatro velas em torno do homem, mas o vento não permitiu acendê-las.

A multidão começava a perder o interesse e se dispersar, o corpo contorcido não chamava mais a atenção. Vieram dois outros guardas, para substituírem os primeiros, famintos àquela hora. O rabecão estava com muito trabalho na zona sul e só passaria tarde da noite. Um guarda comentou com o outro que era um absurdo um velho daquela idade sair sem documentos. Iria mofar muito tempo no IML até alguém se dar conta da sua ausência, ou, então, iria para a escola de medicina.

MPV – julho 1989
Inspirado e baseado no conto de Dalton Trevisan “Uma vela para Dario”

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