segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Everlasting Love

Você chegou em um sábado, no mês de outubro, era dia 19. A primeira vez que o vi, através de um vidro instransponível, você esperneava com miúdas pernas, em cima de uma mesa, onde enfiavam um tubo por sua garganta para tirar o sangue acumulado em sua barriga. Foi amor à primeira vista.

Depois colocaram uma roupa branca e delicada em você e sapatos de crochê vermelhos, para dar sorte. Tinha uma carinha meio amassada, mas, a meus olhos, parecia e era um príncipe.

Seu primeiro Natal foi uma noite quente, exaustivamente quente, sua roupa empapada de suor foi colocada à parte e você dormiu com pouco cabelo grudado à testa.

O susto que nos deu com uma febre em acelerada ascensão, ficou marcada em minha memória. Era véspera do meu aniversário, eu vinha direto da praia e passei para vê-lo. Acabamos no hospital, onde após o desespero do desconhecido, e tudo ter ficado bem, cedi ao choro convulsivo. No dia seguinte, meu presente foi passar o dia com você, engatinhando e rindo e brincando como se nada tivesse acontecido na noite anterior.

Quando retornei de uma viagem, você engatinhou em minha direção na velocidade de um raio, sorridente, com poucos dentes, e consegui tirar uma foto antes de você alcançar seu objetivo, que era o meu colo, na cama.

Já muitos anos se passaram, após aquele nosso primeiro encontro, nossa primeira foto, você em meus braços e eu dizendo baixinho ao seu ouvido: “não chore no meu colo, por favor, não chore”.

Hoje, chamo por você quando você passa, e digo que tenho um segredo importantíssimo para falar em seu ouvido. Você se aproxima, relutante já pela idade, e eu falo: “eu te amo”. E você, na maioria das vezes, responde um “eu também” de forma encabulada e escapativa.

Já basta para encher meu coração de um amor sem fim, sem cobranças, sem julgamentos. Você é o meu everlasting love, que durará para sempre, aqui, lá e em qualquer lugar, juntos, perto, separados pela distância, no dia-a-dia, em todos os momentos.

MPV – setembro 2008

domingo, 28 de setembro de 2008

As três metarmofoses

Foi numa tarde de 31 de dezembro, há dezoito anos atrás, que fui intimada a ler o texto de Niezstche, Das Três Metarmofoses. Tinha que ser uma tradução específica de uma determinada editora, para que eu pudesse apreender em nossa língua, o que havia sido escrito no original alemão.

No texto, descritos, os espíritos livres e o camelo, o leão e a criança. O camelo, o espírito que suporta todos os fardos; o leão, o espírito conquistador e libertário; a criança, o espírito da inocência e do novo começo.

Esse texto me acompanha desde então. Me assombra, me conduz, me guia e me ampara a cada nova fase de minha vida, mês após mês, dia após dia. Às vezes, ele permanece escondido no livro, outras, quando menos espero, pula em meu colo, ainda outras, quando procuro outro texto, meus olhos se fixam nele.

Suportar os fardos, manter-me livre e continuar cultivando a inocência. Ordens da irmã, que mandou-me ler o livro e do filósofo que colocou em palavras a soma do meu espírito.

MPV – setembro, 2008

Friedrich W. Nietzsche - Das Três Metamorfoses

Três metamorfoses, nomeio-vos, do espírito: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança.

Muitos fardos pesados há para o espírito, o espírito forte, o espírito de suportação, ao qual inere o respeito; cargas pesadas, as mais pesadas, pede a sua força.

“O que há de pesado?”, pergunta o espírito de suportação; e ajoelha como um camelo e quer ficar bem carregado.

“O que há de mais pesado, ó heróis”, pergunta o espírito de suportação, “para que eu o tome sobre mim e minha força se alegre?

Não será isto: humilhar-se, para magoar o próprio orgulho? Fazer brilhar a própria loucura, para escarnecer da própria sabedoria?

Ou será isto: apartar-se da nossa causa, quando ela celebra o seu triunfo? Subir para altos montes, a fim de tentar o tentador?

Ou será isto: alimentar-se das bolotas e da erva do conhecimento e, por amor à verdade, padecer fome na alma?

Ou será isto: estar enfermo e mandar embora os consoladores e ligar-se de amizade aos surdos, que não ouvem nunca o que queremos?

Ou será isto: entrar na água suja, se for água da verdade, e não enxotar de si nem as frias rãs nem os ardorosos sapos?

Ou será isto: amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando ele nos quer assustar?”

Todos esses pesadíssimos fardos toma sobre si o espírito de suportação; e, tal como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ele para o seu próprio deserto.

Mas, no mais ermo dos desertos, dá-se a segunda metamorfose: ali o espírito torna-se leão, quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser senhor em seu próprio deserto.

Procura, ali, o seu derradeiro senhor: quer tornar-se-lhe inimigo, bem como do seu derradeiro deus, quer lutar para vencer o dragão.

Qual é o grande dragão, ao qual o espírito não quer mais chamar senhor nem deus? “Tu deves” chama-se o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “Eu quero”.

“Tu deves” barra-lhe o caminho, lançando faíscas de ouro; animal de escamas, em cada escama resplende, em letras de ouro, “Tu deves!”

Valores milenários resplendem nessas escamas; e assim fala o mais poderoso de todos os dragões: “Todo o valor das coisas resplende em mim.

Todo o valor já foi criado e todo o valor criado sou eu. Na verdade, não deve mais haver nenhum ‘Eu quero’!” Assim fala o dragão.

Meus irmãos, para que é preciso o leão, no espírito? Do que já não dá conta suficiente o animal de carga, suportador e respeitador?

Criar novos valores - isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a liberdade de novas criações - isso a pujança do leão pode fazer.

Conseguir essa liberdade e opor um sagrado “não” também ao dever: para isso, meus irmãos, precisa-se do leão.

Conquistar o direito de criar novos valores - essa é a mais terrível conquista para o espírito de suportação e de respeito. Constitui para ele, na verdade, um ato de rapina e tarefa de animal rapinante.

Como o que há de mais sagrado amava ele, outrora, o “Tu deves”; e, agora, é forçado a encontrar quimera e arbítrio até no que tinha de mais sagrado, a fim de arrebatar a sua própria liberdade ao objeto desse amor: para um tal ato de rapina, precisa-se do leão.

Mas dizei, meus irmãos, que poderá ainda fazer uma criança, que nem sequer pôde o leão? Por que o rapace leão precisa ainda tornar-se criança?

Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer “sim”.

Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado “sim”: o espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista o seu mundo.

Nomeei-vos três metamorfoses do espírito: como o espírito tornou-se camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança.

Assim falou Zaratustra. E achava-se, nesse tempo, na cidade chamada A Vaca Pintalgada.

Texto: Assim Falou Zaratustra
Os Discursos de Zaratustra - Das Três Metamorfoses
Foto: Friedrich W. Nietzsche, 1844-1900

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A Caixinha Mágica


Minha sobrinha mais velha tem uma caixa-para-quando-estiver-triste. Nunca precisou ser usada, mas ela está lá, ao alcance da mão e da primeira lágrima. Dentro dessa caixa, objetos pessoais e intransferíveis que têm o poder de fazê-la feliz. Músicas, cartas, acessórios e chicletes, renovados conforme a validade.

L., que fará, em breve, quatorze anos, foi criada em berço de ouro, mas o ouro do amor. Sua mãe, tio-padrinho, avó e tia-avó têm lhe passado o melhor dos mundos de amor. Com sabedoria instintiva e intuitiva, eles formaram com ela uma aliança de afeto, cuidado e incentivo que a fizeram engatinhar, dar os primeiros passos, caminhar acompanhada para que, em breve, ela mesma possa alçar seus vôos solo nesse mundo alucinado em que vivemos.

L. escreveu aos quatro anos, leu aos cinco, criou suas primeiras e próprias estórias aos oito e continua amadurecendo em seu universo mágico da imaginação e, sem pressa, se prepara para Ser. Não tem as certezas absolutas dos adolescentes, o que a qualifica para diversas oportunidades que aparecerão e a farão optar pelos melhores caminhos para sua felicidade.

Ontem, com muito orgulho por minha parte, em um jantar japonês regado a risadas, conversávamos sobre literatura. Ela agora está na fase dos romancistas britânicos dos séculos XVIII e XIX, lidos no original, claro. Compara e critica traduções para o português e risca, com severa crítica, os erros da revisão dos textos.

Sua mais recente preocupação é com o novo acordo ortográfico da língua portuguesa, o que em sua opinião – e na minha também – empobrecerá a língua que, nos últimos setenta anos, terá sofrido sua terceira grande modificação. É pouco tempo para tanta intrusão.

A existência de L. em minha vida só me fez querer ser melhor. Seu primeiro abraço, registrado em foto para a posteridade, ganhei quando ela tinha quatro anos e, de lá para cá, nossas afinidades só cresceram, assim como meu amor por ela.

Ela é a minha caixinha mágica. Suas cartas, bilhetinhos, fotos, desenhos estão comigo, ao alcance da mão ou de alguma lágrima que teime em cair. A minha caixinha já usei.

MPV – setembro 2008


quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Outra História de Amor

“He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.”

Funeral Blues – W. H. Auden



Parte 1
“He was my North, my South, my East and West,”
Naquela tarde de setembro, distraidamente, você abriu a porta e o viu. Seus olhos eram puro mel e o sorriso tímido. Ele procurava seu amigo, mas você não ouviu mais nada, sua visão ficou turva, seus joelhos dobraram e você caiu pesadamente sobre a cadeira do quarto, onde buscou refúgio para sua dor. Doía corpo, doía mente, doía pensamento. Você não sabia o que pensava, não sabia o quê pensar. Recuperou forças, mas desceu a rua com noventa anos, devagar, cambaleante, olhando para baixo. Doía o estômago.

Entrou no ônibus à mesma hora e o motorista amigo a cumprimentou com o “bonjour” diário, sorridente. Você não reparou a gentileza, respondeu automático, procurou um assento vago e não ouviu as conversas em espanhol de todos os dias. Seus companheiros de viagem notaram algo diferente em você, mas nada comentaram, em respeito ao seu semblante fechado.

À noite foi jantar com seus amigos e ele estava junto, vestindo uma camisa azul marinho de manga comprida e quando seus olhares se cruzaram, você suspendeu a respiração. A conversa não foi registrada, somente o momento da despedida, quando você não conseguia mais entender coisa alguma.

Parte 2
“My working week and my Sunday rest”,
A afinidade entre vocês foi imediata. Faziam tudo juntos, desde o supermercado à lavanderia, ele ajudava-a nos estudos, contava-lhe estórias engraçadas, mostrava cicatrizes de tubarão. Você adormecia embalada pelo walkman sintonizado em rádios locais e acordava com o sol brilhando dentro de si mesma. Ele pegou sua mão e beijou-lhe a palma, você respirou fundo, olhou para a sua mão e olhou em seus olhos. Dias depois, ele pegou sua mesma mão e pousou-a em seu peito para você sentir seu coração acelerado. A partir de então, tudo correu. Um amor que você desconhecia completamente tomou seu peito de assalto, tomou seu corpo de assalto, arrebatou seu ser. Tudo o que até ali você julgava como verdadeiro e para sempre, tomou outro rumo. Magoou pessoas importantes em sua vida, sofreu com isso, mas o sentimento era tamanho que você não se julgou capaz de viver um só instante sem ele.

Mudou seus planos, sua vida, sua casa, seus amigos e, finalmente, seu país. Foi atrás de uma estória que só existe em contos de fadas. E viveu-a intensamente. Fadas podem não existir eternamente, mas elas existem por um certo período de tempo. E esse tempo foi seu e dele.
Parte 3
“My noon, my midnight, my talk, my song;”
Sua primeira anotação em seu diário após a mudança foi:
“momentos de sol iluminam minha vida neste país frio. Tudo tem sido infinitamente profundo e intenso, tudo me toca fundo, se eu imaginava como poderia ser bom, eu ainda não conseguia alcançar o quanto, na verdade, era sublime. Ainda flutuo no tempo e no espaço.”

Você vivia uma vida que não lhe pertencia, mas era sua; experimentava sentimentos nunca vividos, às vezes sentia-se em meio a um filme clássico de amor, produzido pelo melhor estúdio disponível.

A vida teve altos e baixos, como praticamente todas e você pensou: ali com ele, teve muitos dos melhores momentos de sua vida, indescritíveis, inesquecíveis e impossíveis de serem vividos novamente. Mas, com certeza, viveu alguns dos piores jamais imaginados. Algumas músicas do período, até hoje, você evita ouvir, tamanha dor provocada.

Depois de tão alto vôo, tão profunda queda. Após tanto amor, quanta dor.
Parte4
“I thought that love would last for ever: I was wrong.”
Naquela manhã de sol, você atendeu ao telefone, fingiu que não ouviu a pessoa do outro lado, desligou e, em seguida, deixou-o fora do gancho. Tudo estava pronto para a partida, você levantou-se pesadamente do sofá, caminhou até o carro, já carregado com as malas, deu a partida e esperou. Ele desceu as escadas, e vocês foram em silêncio até o aeroporto. Ele saiu do carro, pegou suas malas e veio lhe dar o abraço final. Você estava firme, com a cabeça erguida e conseguia esboçar um sorriso. Triste, mas era um indício de sorriso. Ele caminhou para a entrada e você ficou em pé, ao lado do carro, com a porta aberta, acompanhando-o com o olhar. Viu quando ele desapareceu no meio da multidão, então entrou no carro, sentou-se ao volante, abaixou a cabeça e chorou.

MPV – setembro 2008

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Lloyd Cole, Man Enough

Now that the low life has no meaning
'Cause you've been there, now you're gone
But your heart won't keep from cheating
It's stringing you along
Stranger to me, well what's the lowdown
Are you man enough to pray
For a better way of living
I believe i've lost my way
Oh may, could you please hold me
I believe i might fall
I believe that i might fall
Could there be a better way of living
Better than the easy way
Could the wretched be forgiven
Are you man enough to pray
Wore my heart upon my sleeve
To court the wretched and the free
But if by chance i'd lost my way
Would you help me find it babe
Oh may, could you please hold me
I believe that i might fall
I believe i might fall
Now that the low life has no meaning
'Cause you've been there, now you're gone
But your heart won't keep from cheating
It's stringing you along
Wore my heart upon my sleeve
To court the wretched and the free
But if by chance i'd lost my way
Would you help me find it babe
Oh may, could you please hold me
I believe that i might fall
I believe that i might fall
Wore my heart upon my sleeve
To court the wretched and the free
But if by chance i'd lost my way
Am i man enough to pray
Am i man enough to pray
Are you man enough to pray
Are you man enough to pray

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Irmãos

Minha família é grande sem o ser. Minha mãe, filha única, tem (ou teve) muitos tios e tias que não víamos, por inúmeros motivos. Meu pai tem uma irmã e três sobrinhas, minhas primas queridas, com as quais cresci e farreei. Eu tenho uma irmã (como já mencionei antes, de pais e mães diferentes) e um irmão (mesmos pai e mãe) seis anos mais novo que eu.

Com o passar do tempo, a diferença de idade entre nós dois diminuiu, mas não a de temperamento. Com, praticamente, uma geração entre nós dois, somos muito diferentes em quase tudo. Nos últimos anos, brigamos um com o outro, brigas que não estavam na sinopse inicial de nossa vida em comum. Isso leva tempo para ser superado, mas gosto de lembrar uma frase de um filminho bobo, blockbuster de sua época, em que um dos personagens principais diz “I thought we were invincible./But now I know that the things people in love do to each other they remember./If they stay together, it's not because they forget, it’s because they forgive” (“eu achava que éramos invencíveis./Mas agora sei que coisas que pessoas que se amam fazem umas às outras, são lembradas./Se elas permanecem juntas, não é por que elas esquecem, é por que elas perdoam”).

Assim, invoco os sentimentos que nos fizeram crescer juntos em idades tão diferentes e busco a esperança do futuro nos sábios ensinamentos de meu pai sobre família. Ao mesmo tempo, recordo épocas em que meu irmão ainda era mais baixo que eu, suas peraltices pela casa, implicâncias variadas; gol a gol no corredor, com bola de espuma; sua coleção de camisas de times de futebol, hoje passada ao seu filho mais velho; o relógio vendido oito vezes ao meu pai; suas festas à fantasia; as flores à primeira namorada; seu olhar embevecido ao me ver de noiva; seu primeiro carro; a entrada para a faculdade, e sua bela monografia de conclusão de curso; o nascimento de seus dois filhos, sobrinhos mais que queridos.

Certa vez, conversando com ele, disse que, pela lei natural das coisas, nós dois, juntos, é que choraremos, juntos, por nossos pais e juntos, somente nós dois, juntos, sentiremos o sentimento da hora, juntos. E isso, juntos, fará toda a diferença. Juntos. Como dizia Nietzsche, “às vezes é preciso fechar a mão por amor”, mas se nós permanecemos juntos é por que temos o dom de perdoar. Em mão dupla.

MPV – setembro, 2008

Diálogo do filme Indecent Proposal, 1993

sábado, 13 de setembro de 2008

Novo é o ato da Descoberta

A coluna de José Castello, hoje no Prosa e Verso do jornal O Globo vem com o título “Schnitzler de algemas”. Fala sobre o escritor austríaco (1862-1931) e sobre um de seus romances, "Crônica de uma vida de mulher” (Editora Record, tradução e prefácio de Marcelo Backes).

Na introdução, escreve: “Schnitzler afirmava que a psicanálise não era nova, só Freud era, de fato, novo. Da mesma maneira como, por exemplo, a América não era nova, mas Cristóvão Colombo, sim. O novo não é o que se revela, pois, na verdade, sempre esteve ali. Novo é o ato da descoberta, dizia”.

Saindo da alta intelectualidade, tanto do autor, como do articulista, e voltando para os sentimentos do dia-a-dia, descobrir, para mim, sempre foi a palavra mágica.
Por que descobrir traz o novo, mesmo que o novo seja velho, ou antigo.

Descobrir uma música, ou outra versão da música preferida; descobrir um livro, um autor, descobrir uma vila na calçada de prédios, descobrir um caminho, ao caminhar trajetos diferentes todos os dias; descobrir uma amiga, atrás da velha conhecida; descobrir um sentimento dormindo no sofá; descobrir uma receita para ingrediente antigo; trazer o novo para a vida.

MPV – setembro, 2008

Foto: Arthur Schnitzler
Escritor austríaco
1862-1931

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Confraria dos Bibliófilos do Brasil

Corria a manhã de 24 de setembro de 2002, não fazia nem um mês que eu estava de férias, ou melhor, na entressafra de empregos e eu lia o jornal, preguiçosamente na sala. Início da estação mais bonita no Rio, luminosidade do dia em alta, sem o calor escaldante do verão, brisa ainda fresca, entrando pela janela aberta do apartamento.

Peguei o Segundo Caderno do Globo e dei de cara com a matéria intitulada “O Olimpo do livro Brasileiro”. Li, com atenção, como leio tudo o que diz respeito a livros, livrarias, autores, sebos, editoras e afins. A reportagem era sobre a Confraria do Bibliófilos do Brasil, fundada sete anos antes, em Brasília, por José Salles Neto, e mostrava um clube de amantes do livro objeto, não só da literatura, que produzia verdadeiras obras de arte, ilustradas, numeradas, com tiragem limitada.

Fiquei fascinada, havia encontrado minha turma! É óbvio que, quando li alguns dos nomes da “turma”, descobri que eles estavam distantes de mim em todos os sentidos possíveis: geográfico, financeiro, intelectual. Mas sofríamos do mesmo Bem: o amor aos livros.

Desde pequena sempre li muito, incentivada por mãe proprietária de vasta biblioteca e pai dono de imensa curiosidade, inicialmente os livros de casa, depois os que pedia para comprar e então os que fui adquirindo. Entro nas livrarias para dar oi para os livros. Passo a mão por suas capas, leio sinopses, as primeiras linhas, cheiro os livros novos (não faça isso em sebos! Fiz e espirrei por dois meses), compro e levo para casa como um tesouro.

Terminei de ler a matéria que trazia duas formas de contato: uma caixa postal em Brasília e um endereço eletrônico. Caminhei até o computador e resolvi enviar uma mensagem de interesse em me associar. Depois de enviada, pensei: quanta gente não deve fazer o mesmo e a julgar pelos que já são sócios, minha chance é mínima...

Passados uns dias, recebi um telefonema da Inês, diretora da Confraria. Conversamos muito, basicamente sobre mim, meus interesses, o que fazia, até que ela formulou a pergunta mágica: “Você tem mais livros do que jamais conseguirá ler durante toda a sua vida?” respondi, sem titubear: “Claro!” Acredito ter sido ali a aceitação de minha candidatura a membro da Confraria.

Desde então, cada seis meses são de espera ansiosa pelo próximo livro que chegará. Dos vinte e três já publicados pela CBB, não tenho alguns dos primeiros, esgotados e hoje vendidos a peso de ouro em leilões. O próximo a chegar será “Guimarães Rosa Centenário – Três Contos de Sagarana”. Não vejo a hora!

MPV – setembro 2008

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Cães, Gatos e outros assuntos

Passeio pelo menos duas vezes por dia com minha mãe/dona/master of the universe. Sou conhecida na rua, os donos das lojas, o jornaleiro, porteiros e quase todos os vizinhos me acham muito charmosa. Vivem tentando me fazer graças, mas eu só ligo mesmo para os que me tocam o coração. E não sou uma conquista fácil.

Existe um pedaço de calçada em que já tenho permissão para andar sozinha, sem a guia, mas é só eu dar uns passos a mais, que volto logo para a prisão. Logo eu, que sempre andei solta, correndo pelos gramados da vida.

Tenho alguns amigos pela área, o Cafuringa, o Gutinho, o Tchulú, meu amigo surfista, e o Nemo, que encontro pouco. Como hoje fui passear na praia, encontrei-o. Ele tem a desagradável mania de me cheirar, mas eu dou o troco e cheiro ele também. E devo confessar: ele é lindo! Todos na rua, quando nos viram juntos, falaram que ele tinha arrumado uma namorada. Fiquei com vergonha, mas cheia de orgulho daquele bonitão gostar de mim!

Na praia, nunca me deixam correr solta, dizem que é lei e a lei é para ser respeitada. Mas eu consigo tirar uma casquinha, quando minha dona se senta no calçadão, na beirinha da areia. Fica uma brincadeira divertida que me enche de gás, eu corro até o máximo da guia, (e ela é curtinha, uma pena!) atrás dos pombos que pousam por ali, ciscando restos. Aliás, não entendo porque eles podem e nós não. Eu sou vacinada, vermifugada, banhada, minha mãe me passa um remédio mensal contra parasitas variados mas, mesmo assim, não posso brincar na areia da praia. Mas, voltando à brincadeira, eu corro atrás dos pombos, eles fogem, lógico, e eu volto correndo para o calçadão, dou a volta por trás da minha master e começa tudo de novo. Hoje tentei cavar a areia, como eu fazia na terra, mas não tem a mesma graça. Ficamos lá vendo o pôr do sol e voltei saltitante, para casa, com minhas orelhinhas abanando ao vento.

Minha dona já me disse que quando eu ando séria, num passo compassado, eu fico a cara do John Travolta naquele filme Pulp Fiction. Ela inventa cada coisa! Diz que é o ritmo do caminhar, e o balançar das minhas orelhas fica igual ao balançar dos cabelos dele no filme. Vai discordar...

Nas redondezas de meu prédio, mora um gato. Grande e moreno. Se eu não fosse uma cachorrinha criada no campo, poderia até dizer que ele é um gatão. Mas, o problema é que gatos fogem de cães no campo e eu corri muito atrás de gato, para espantá-los do meu território. Na cidade tudo é diferente. Gato enfrenta cão! Nunca tinha visto coisa semelhante! Na segunda vez que rosnei pro Morenão, ele esticou suas garras em minha direção e levei um susto. É claro que não deixei transparecer meu medo, minha mãe me puxou na mesma hora, e eu ainda dei uns latidos na moral. Agora já estou mais acostumada com a presença dele e nós passamos o tempo nos olhando. De longe. Ele lá e eu cá. Por mais que minha master tente me ensinar que cães e gatos podem ser amigos, acho que somente o tempo para eu me acostumar com a idéia.

Bom, agora tenho mais o quê fazer, como roer essa trança linda que ganhei, e outro dia voltarei para contar alguma outra estripulia.

MPV – Setembro 2008

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Aquele que só enxerga o que quer


O problema aumentou. Na verdade, vem caminhando na direção superlativa há muito tempo. Todo mundo finge que não vê. Atribui-se ao tempo, às aves migrantes, ao bêbado da esquina, à mulher de branco, menos ao óbvio.

Quando se resolve tocar no assunto, as respostas defensivas são agressivas, não dizem respeito ao problema em si e não trazem solução. Envolve terceiros e quartos, mas nada disso importa, para aquele que só enxerga o que quer. E quando se venda os olhos, não se enxerga nada.

Ao redor daquele que só enxerga o que quer, estão seus reféns emocionais, que permitem que a situação não saia do lugar. Caminham, todos, de mãos dadas, para o buraco desconhecido, negro sugador de energias vitais, que vomitará, de volta, apenas destroços de mentes exaustas.

Mentes exaustas, enfastiadas, enfraquecidas, aborrecidas, cansadas, mentes exaustas, exaustas, exaustas, que repetirão seus mantras até que tudo seja pó.

MPV – setembro, 2008

sábado, 6 de setembro de 2008

Notas Rápidas de uma Semana em Setembro

Segunda: Pensei, li, escrevi e conversei. Descobri. Voltei a terra e fiz coisas mundanas: banco, pet shop, supermercado, farmácia...

Terça: Pensei, li, escrevi e conversei. Entendi. Voltei a terra e fui ajudar minha mãe a instalar um dvd player complicado. Tira cabos, coloca cabos, liga, mexe com a seta, dá enter, liga-desliga, escrevi um manual para operações. Os aparelhos vêm cada vez mais cheios de funções que não precisamos. Poderia vir com seis botões: liga, play, stop, rewind, forward, legendas. Conversando com minha irmã, ela mandou-me trocar de canal na tv, só por que eu estava assistindo a um jogo de tênis. “Com tanta coisa boa para ver, você tá assistindo jogo? Tá maluca?”

Quarta: Pensei, li, escrevi e conversei. Provoquei. Voltei a terra e coloquei mãos à obra na obra em andamento. Amanhã tem reunião. Consegui instalar a câmera, presente de minha madrinha, em meu computador. Agora posso me exibir para o mundo tecnológico. Falei com meu sobrinho sobre um dvd que está para chegar.

Quinta: Pensei e conversei. Indaguei. Voltei a terra e me arrumei para a reunião no centro da cidade. Trinta e cinco graus à sombra. Andei, senti calor, peguei o metrô, senti mais calor, andei até a rua do Ouvidor, senti mais, mais calor e cheguei. A reunião com o pai de minha irmã (sim, somos irmãs de pais e mães diferentes) e sua mulher foi ótima. Uma reunião de trabalho em que se produz e ri-se muito é o paraíso. Depois da reunião, eles me convidaram para almoçar no japa, eu adoro comida japonesa, e foi mais um sem fim de causos e risos. Indescritível. Voltei para casa, refazendo o mesmo itinerário, mas com dois agravantes: os ambulantes gritavam mais àquela hora da tarde e eu escolhi o sapato errado para caminhar nas pedras portuguesas e driblar os buracos de minha cidade.

Sexta: Pensei, li, escrevi, conversei, trabalhei. Resignei. Voltei a terra e continuei a espera de algumas respostas de trabalho e do meu sócio, que foi se perder nas terras do Amapá. Falei com minha irmã, com quem falo várias vezes por dia, todos os dias, e por causa de uma ventania, entrou uma pedrinha em seu olho e ela saiu do oftalmologista como uma pirata, com tapa-olho e pomada anestésica. Se eu estivesse perto, ia desenhar uma caveira no tapa-olho. Já tentei falar com minha sobrinha mais velha e não consigo. Ah, esses adolescentes...

MPV – setembro 2008

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Dante Milano, Tercetos


Eu sou um rio, a água fria de um rio.
Profundo, cabe em mim todo o vazio,
Um reflexo me causa um calafrio.

Sou uma pedra de cara escalavrada,
Uma testa que pensa, e sonda o nada,
Uma face que sonha, ensimesmada.

Sou como o vento, rápido e violento,
Choro, mas não se entende o meu lamento.
Passo e esqueço meu próprio sofrimento.

Sou a estrela que à noite se revela,
O farol que vê longe, o olhar que vela,
O coração aceso, a triste vela.

Sou um homem culpado de ser homem,
Corpo ardendo em desejos que o consomem,
Alma feita de sonhos que se somem.

Sou um poeta. Percebo o que é ser poeta
Ao ver na noite quieta a estrela inquieta:
Significação grande, mas secreta.

Dante Milano (1899-1991)
Tercetos

Foto: Retrato de Dante Milano
Cândido Portinari
Pintura óleo s/ tela - 1931