sexta-feira, 27 de março de 2009

Não Reconheço

Não te reconheço em ti. Não te busco porque não te encontro. Não sei onde estás, onde fostes te esconder, como chegastes aí. Mais além, porque chegastes aí. Porque resolvestes fechar tanto a mão por amor. Fechastes mãos, boca, portas, janelas, compartilhar tuas dores nunca foi teu forte, mas tua concha, que aparenta estar aberta, está fechada para olhares mais atentos. É possível que mesmo tu não tenhas percebido as portas cerradas. Não reconheço teu amor assim distante de ti, longe dos teus, como a castigares a ti e aos teus, como se o modelo antigo tivesse te exaurido, como se o modelo novo te aprisionasse, como não houvesse saída, como se a essência houvesse mudado e a essência não muda, lembras? Tua essência sempre foi liberdade, sol, improviso e riso. Não encontro tua essência. Acreditas que o problema está nos outros, mas os outros são tantos e com os mesmos problemas que cabe a pergunta: O problema está só nos outros? Não reconheço teu amor assim distante de ti, longe dos teus, numa constante faxina material como se arrumar o exterior organizasse o interior. Não reconheço teu amor assim distante de ti, longe dos teus, como se não existisse uma imensa e larga escala de cores entre o preto o branco, entre a convergência total e a ausência de todas as cores. Não reconheço teu amor assim distante de ti, longe dos teus, aguardo. Dias melhores virão.

MPV – março 2009

sexta-feira, 20 de março de 2009

Juventude

Ele cruzou o portão principal da universidade em cima de uma bicicleta comum a caminho de casa. Vestia longas bermudas cáqui e camiseta marinho, mochila colada nas costas e cabelos louros curtos balançavam enquanto pedalava contra o vento. Não devia ter mais do que dezoito anos e acompanhei seu trajeto jovem, sentada ao volante de meu carro. Passou embaixo do viaduto, subiu na calçada, onde não há ciclovia e esperou no sinal fechado, como todo mundo. Era a personificação do futuro. Bonita figura do nascer de um homem. Belo exemplar físico do que gerações de cruzamentos variados criaram para o século XXI. Parado no sinal, passou as mãos pelos cabelos e ergueu o torso da incômoda posição das pedaladas. Parado no sinal, esperando como todos, fez planos para o show de logo mais, para o encontro com os amigos, de qual caminho tomar. Avançou antes dos carros, na liberdade de seu meio de transporte, com a inquietação dos vinte anos. O mundo pertence aos vinte anos, nada de mal acontece, a estrada ainda é longa e avançar o sinal faz parte do cotidiano carioca de todas as idades. Seguiu na calçada já com ciclovia e continuou sem esforço, sem pressa, pedalando ao sol dos últimos dias de verão. Imaginei o que faz quando chove. Pega um ônibus? Porque, mesmo que tenha carro, não tinha o perfil de quem se tranca dentro de quatro portas com um motor. Suas pedaladas são sua liberdade, seu caminho, seu desvio. Não... mesmo quando chove, usa a bicicleta. Chega molhado e ri, espera embaixo da marquise, mas não abdica de seu livre pedalar. Acompanhei-o curiosa por mais algum tempo, até que ele virou à direita e eu segui para a Lagoa.

MPV – março 2009

quinta-feira, 19 de março de 2009

Um dia casei

Um dia casei. De verdade, assinei papéis, conversei com o padre, jurei amor eterno. Igreja Nossa Senhora do Monte do Carmo, Praça XV do Rio de Janeiro, o gráfico que imprimiu os convites, orgulhoso, quis escrever o endereço todo só para usar os algarismos romanos da praça. Casei de branco, vestido lindo e véu moderno, esperei no carro dando voltas no quarteirão para chegar na hora marcada para os sinos badalarem. Sempre adorei sinos de igreja. Ainda paro para ouvi-los. No sinal, um menino de rua se aproximou do carro para pedir uma moeda e me viu, naqueles tempos os carros não usavam o filme escurecedor de vidros que hoje em dia carregam. Ele me viu e o sorriso que deu ao murmurar maravilhado: - uma noiva!... carrego comigo até hoje (terá sobrevivido à vida nas ruas?). Quando o carro arrancou, deu um tchau e correu de volta para sua calçada. Noite estrelada, sem riscos de chuva ou trovoadas, meio de junho de um ano perdido lá atrás. As portas imensas da igreja fechadas, convidados lá dentro, alguns do lado de fora ajudavam a arrumar o vestido, quarenta metros de tule embaixo da saia rodada, lindo vestido, já falei? Quando o estilista desenhou para mim, veio com meu nome escrito. Era simples e chique, sem rendas ou bordados e com uns cem mini botões do decote à barra. Um laço imenso, atrás, dava um toque bem da época. O estilista e o irmão já morreram faz tempo, os dois de aids, em épocas próximas. Uma tristeza, eles eram ótimos. Minha prima veio do sul com uma roupa de parar o trânsito e uma estória que até hoje arranca gargalhadas de quem ouve. O máximo. As músicas todas trocadas, nada que havia sido combinado, acabei entrando com a que falei que não queria de jeito nenhum, porque me lembrava programa de auditório da minha infância. Nervosa do jeito que eu estava, ainda assim ouvi a música tocada-trocada. Meu pai me conduziu pela nave, parecia um deputado em eleição, orgulhoso, cumprimentando o povo, em direção a um noivo sorridente. Nada do que se faz hoje em dia eu quis, achava cafonérrimo: não quis cortejo de padrinhos, não quis desfile de convidados e se pudesse, acho que teria entrado pela sacristia. Não quis pétalas caindo na cabeça, não quis fotos no altar e as músicas que quis não tive. Houve uma época em que não se podia usar música popular nacional ou não em casamentos na igreja, e as opções eram poucas para meu gosto de então. O padre, amigo da família, fez uma missa emocionada que só fui assistir no vídeo, claro. E, tempos depois, meu irmão distraído gravou gols por cima na fita, cortando toda a entrada e minhas lágrimas de nervoso. No altar, uma madrinha de preto. Eu havia pedido: preto, branco, vermelho, roxo, não! Lá estava ela, vestida de urubu. Outra madrinha deu o cano na hora. Um padrinho ficou sozinho no altar, só vi lá. Dos quinze, só restam cinco em minha vida. Os queridos morreram, os outros desapareceram na bruma da estrada. Na saída, acho que a tropa do altar veio atrás de nós dois, mas aí já não importava mais. Os cumprimentos demoraram anos, e eu lembrava de minha outra prima que dizia que colocaria um boneco agradecendo quando chegasse sua vez. Lembro vagamente da festa em seguida, sem música porque também achava cafona casamento com música. E naquele tempo era música, não era o funk de hoje em dia... O matrimônio não durou muito, mas a cerimônia, proporcionada por meus pais, perdura até hoje. É uma lembrança linda, que carregarei comigo.

MPV – março 2009

quarta-feira, 18 de março de 2009

Como falar de amor?

“Você descreve situações com tanta calma, tanto amor, quem lê o que você escreveu acha que o autor é uma pessoa tranquila... Fale mais de amor...”

Como falar de amor se ele adormeceu, dopado por uma dose cavalar de clonazepam? Como falar de amor se ele viajou, tirou férias de mim, retirou-se de cena e me disse, baixinho, que não sabe se volta? Como falar de amor com contas a pagar, com a falta de dinheiro, com o buraco do peito que desceu para o bolso? Como falar de amor com o menino mortinho de tanto cheirar cola, estirado na calçada, com transeuntes virando a cara? Como falar de amor com o velhinho desconhecido, deitado na maca na esquina da minha rua, ambulância do Samu com sirenes ligadas? Como falar se o erro foi maior que o acerto, se o pijama era três números menor, se a roupa branca não serve mais? Como falar se a ficha caiu, a chuva caiu, a conexão caiu, e eu, caída no chão, emprego imenso esforço para me levantar? Como falar se o olho enche de água só de pensar, se o queixo treme, se os óculos escuros do disfarce foram deixados em outra bolsa? Como falar se eu esqueci de tudo e não sei onde estou? Como se eu fui largando pedaços de mim pelos caminhos, não usei miolo de pão, não marquei trilha para voltar? Como falar de amor se o grito é de dor? Como falar se a Fé me escapa entre os dedos, se ando olhando para baixo, se os ombros estão curvados com tanto peso? Como falar de amor se o que sinto é medo, se o que enxergo é negro, se o que ouço é nada? Como falar de um mundo coletivo, colorido, se não consigo rastejar para fora do meu particular em preto e branco? Como falar de algo que se dá, se eu não sei receber? Como falar de grandes e complexas construções se meu lego veio incompleto, se as peças não encaixam? Como falar de tintas e cores e pincéis se eu não tenho onde pintar? Ou se eu não quero pintar? Ou, ainda, se eu não consigo pintar? Como falar de amor se eu não sei onde o deixei?

MPV – março 2009

segunda-feira, 9 de março de 2009

Cansei

Cansei das brigas e discussões. Cansei dos mal-entendidos em que não adianta tentar explicar que não era bem aquilo. Cansei da chuva que não para de cair e deixa tudo molhado, encharcado, deixa o beco com cheiro de mistura de xixi e cerveja da semana passada. Cansei de sentir dores. Dores nos braços, nas pernas cansadas, com veias saltadas, na barriga endurecida, no peito a dor que não passa. Cansei de me entupir de remédios para acordar, para dormir, para comer, para não sentir dor, para voltar a sentir. Quatorze vidros enfileirados em cima da mesa da cozinha esperam por mim. Cansei. Cansei de estar com as janelas gradeadas, com as portas trancadas, com o telefone à mão. Cansei. Cansei de arrastar meus pés até o banheiro, até a sala, até a cozinha e retornar mais cansada. Cansei. Cansei da TV só funcionar em um canal que não assisto. Cansei de tomar banho. Cansei de trocar de roupa. Cansei de escovar os dentes. Cansei do cheiro de suor pela falta de banho. Cansei de falar uma lingua que ninguém entende. Cansei de mexer meus olhos e não ser compreendida. Cansei de abrir a boca e não conseguir falar. Cansei dos latidos que vêm do vizinho. Cansei das crianças que tocam a campainha e saem correndo. Cansei de tudo isso e um pouco mais. Hoje será minha última noite. Cansei. Amanhã não acordo mais. Cansei. Permanecerei cansada.

MPV – março, 2009

O Dom

Não sei falar. Meus argumentos são fracos e infantis quando me expresso pela fala. Melhor seria ficar calada e arranjar um canto para escrever. Quando falo, é demais ou de menos. Quando de menos, não me faço entender. Quando demais, acabo dizendo coisas que dão margem a múltiplas interpretações e, invariavelmente, são ofensivas, magoantes, nubla o tempo, os olhos, acaba com o dia. E depois para dizer que verde não é vermelho não adianta mais. Já foi dito e interpretado daquela maneira. Mas não era nada daquilo que eu queria dizer. Era algo que passava por aquele caminho, mas fazia um desvio que amenizava a situação. Mas como meu discurso fraco-infantil saiu daquele jeito, ouço o que não mereço ouvir. E aí? E depois? Recolho minha bolsa e passo o resto do dia entre lágrimas e bolo de chocolate. A tristeza é tão grande que a temperatura do corpo cai e eu não sinto calor nesse Rio de Inferno. Shee percebe minha tristeza e põe sua patinha no meu braço, me acompanha com o olhar quando vou fungando do quarto para o banheiro, encosta seu corpinho em mim, e o focinho gelado/molhado na dobra do meu cotovelo. Um amigo diz que não sabe como alguém que se expressa tão claramente na escrita pode dizer tanta bobagem em voz alta. Minha terapeuta dizia que comigo a sessão era dividida em duas partes: o que eu falava no consultório e o que eu levava escrito. Já são dois especialistas na minha humilde pessoa dizendo que algo está errado em minha oratória. Estou investigando um modo de quietude. Quando tiver que argumentar fraco-infantilmente, calar-me-ei. Se for imperativa a minha argumentação, que seja por escrito. Demora um pouco mais, em compensação os olhos permanecerão secos. De ambos os lados.

MPV – março 2009

Igreja e Deus

Sobre o Brasil de um modo geral, o que mais me deixou - e à minha família - estarrecida, católica por formação, mas seguindo o que considero, livremente, os mandamentos de Deus e não da Igreja, foi a polêmica em torno do aborto da menina de nove anos, estuprada pelo padastro, e as declarações daquele homem sem espírito cristão que atualmente ocupa o arcebispado de Recife. Mandou muito bem Merval Pereira em sua coluna de sábado.

Sexta fui a uma missa, encomendada (e paga, lógico) em memória de dez anos de morte da mãe de minha irmã e a homilia do padre foi na defesa da excomunhão dos médicos e equipe! Primeiro, a inadequação do tema ao motivo da missa; segundo a virulência das palavras do padre, que levavam em consideração o ato isoladamente - o aborto autorizado pela justiça - sem levar em consideração as circunstâncias, ou o risco de vida para a menina. No meio do discurso medieval, indignada, fechei olhos e ouvidos e comecei a rezar para minha família, amigos e mesmo para a menina e sua família.

Quando ele terminou, abri os olhos e fixos nele, pensei: esse padreco vai enumerar os requisitos para a comunhão. Não deu outra: Há mais de vinte anos eu não ouvia os "deveres" para poder comungar em uma missa e ele mandou: "os que quiserem receber a Comunhão, devem estar há mais de uma hora em jejum, devem ter se confessado e devem estar em conformidade com os mandamentos e leis da Igreja".

Bom, pensei: o jejum já tinha horas e a fome começara a bater; confessar, eu me confesso diariamente em minhas orações e em conformidade com os Mandamentos e Leis de Deus, estava. A Igreja é dos homens. Deus é outra conversa. Preenchi os requisitos. Comunguei.

MPV – março 2009
Enquanto espero, I'll be seeing you com Bing, Sinatra, Etta, Bennett e Billie, para sempre eterna

terça-feira, 3 de março de 2009

Setenta anos

Setenta anos. Mamãe faz setenta anos. Data redonda tem mais peso, simbolismo maior. Mamãe de setenta tem carótida entupida, sente dor na perna, diz que está cansada e caminha na Lagoa, tem os cabelos enroladinhos como um anjo louro, pequenino, a pele de porcelana, o nariz com poucas rugas, avermelhado pelo remédio da discórdia. Mamãe de setenta quase foi barrada no caixa dos idosos porque uma velhinha achou-a muito novinha. E olha que mamãe de setenta nunca fez plástica!
Mamãe de setenta não quer festa, ou celebração com grande turma, só a família diminuta e o calor do Rio. E a cunhada-irmã que chegou de surpresa, vinda dos pampas, trazendo movimento e alegria para a casa. O telefone não para, ela atende com satisfação e certo orgulho. Mamãe faz setenta.
Pela manhã, mamãe de setenta, ganhou presentes, beijos e latidos. À tarde sentiu dor na perna. À noite comemorará conosco sete décadas, sete dezenas de vida, parabéns para mamãe de setenta. Tenho que ir. Mamãe de setenta já ligou exigindo minha presença mais cedo.

MPV – março 2009

Raiva

A raiva que senti foi indescritível. Sem medidas de tempo, espaço ou tamanho. De dentro do estômago brotou a onda nauseabunda de frango, milho, cerveja e raiva, transformando-se em tsunami vomitada em seu rosto, em seu cabelo, em seu colo, tirando-me a cor do corpo e tingindo minha cara de vermelho cor-de-esmalte-descascado. Você recuou dois passos, levantou os braços, pediu calma, olhou para as próprias roupas nojentamente molhadas, fedidamente empapadas, mas não se olhou no espelho, não viu sua cara de mentiroso nojento, de mentiroso contumaz, de mentiroso desleal. Desleal! Eu devia ter jogado o espelho em você, para que dessa vez, pelo menos dessa única vez, você conseguisse enxergar o que todo mundo vê, menos você. E eu. Até então. Não mais. Abri a porta da casa, expulsei adão do paraíso, vassoura em punho, varri seus cacos pela escada, atirei suas coisas no jardim, tal clichê de novela, soltei os cachorros e ameacei chamar a polícia. Janelas vizinhas se entreabriram, olhos curiosos avistaram a baixaria há tanto aguardada no bairro, a notícia correria rápido antes do dia amanhecer, mas você já estaria longe, num caminho sem retorno. Desejei que seu carro espatifasse na primeira curva, ansiei para que rolasse ribanceira, enxerguei seu corpo inerte no caixão, sem mais possibilidade de fazer mal a ninguém, mesmo que esse alguém quisesse sentir a força de sua maldade, o tamanho de sua deslealdade, a sua capacidade de trair sorrindo. Com o sorriso de menino que tantas vezes achei ser meu, mas que agora jazia no fundo do poço dos desalmados. Pedi para que você morresse porque assim a dor da traição seria trocada pela dor do nunca mais, mas você saiu rápido de cena, desapareceu na bruma e não ousou voltar. Ainda vive. Ainda é capaz de levar seu sorriso sociopata a outro alguém. Morreu lentamente para mim, que já não sinto raiva, não falo seu nome, não lembro de sua voz, esqueci seu rosto.

MPV – março, 2009