quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Colhe o Dia

Há um ano atrás, exatamente um ano hoje, encontrei o meu amor. Ou reencontrei, se preferirem. Passeava por aí, já achando que essa estória de encontrar o amor da vida era coisa dos outros, de alguns afortunados ou mentirosos, que a tampa não existe e a panela às vezes fica cheia, às vezes vazia, conforme o momento, mas sem nenhum prato especial.

Vivi. Ou melhor, tenho vivido uma vida boa, com os altos e baixos que todo mundo tem, alguns momentos memoráveis e outros nem tanto, com estórias engraçadas que poderiam estar em qualquer episódio da “Comédia da vida privada”. Não tenho muito do que me queixar e os grandes problemas que apareceram, foram superados com uma boa margem de segurança. Posso perfeitamente dizer, caindo no lugar comum, que o sol brilhou durante a maior parte de meus dias, mas de tempos em tempos e sem aviso prévio, me atacava uma angústia inexplicável.

Eu mudei de idéia e de país, de emprego e de amigos, comecei e recomecei, tendo zerado a conta das referências de vida algumas vezes. Mas, tanto nos melhores, quanto nos piores momentos, a angústia chegava vagarosa, feito um monstro das trevas, atravancando os caminhos e fechando os sorrisos, trazendo distantes lembranças que chegavam a doer, por serem apenas isso - lembranças.

Eu havia desistido do amor. Depois de alguns caminhos errantes, que me afastaram do ponto inicial, desisti e fiquei à deriva, num ir e vir nauseabundo que, às vezes, fazia rir, mas não aconchegava. Muito tempo andei por aí, olhando os casais se abraçando na rua, olhos nos olhos, enamorados, trocando beijos e juras de amor e imaginava-os atores de um filme para o qual não fui convidada. Fazia cálculos e tecia troças sobre os desencontros, dizendo que se a chance de encontrar a alma gêmea é de um em três bilhões de terráqueos - considerando somente a metade que me interessa - seria imposível achar o tal. E se ele fosse chinês? A China nunca foi minha prioridade de descoberta da parte do mundo que não conheço, logo, nunca nos encontraríamos. Sofrimentos e grandes desesperanças fizeram-me cética a respeito do amor e principalmente dos relacionamentos. Como era possível duas pessoas diferentes em tanto, conviverem eternamente sob um manto denominado amor? relacionamentos fugidíos pareciam ser a saída mais fácil, sem o comprometimento da alma. Mas, justamente por deixá-la de fora, chegava uma hora em que o vazio era maior e o mundo perdia a cor. Faltava alguma coisa. Mas eu achava que havia feito a minha opção.

No entanto, numa viagem, andando de carro com uma amiga, compras por fazer, coisas para arrumar em casa, eu o vi. Não o reconheci logo, sabia quem era ele, mas não o reconheci como haveria de ser. Saltamos do carro, sorrimos todos, falaram eles. Eu permaneci em um estado inquieto de emoção, que mais tarde se explicaria, quase muda, mascarando o meu rosto com um sorriso blasé que não me pertence. Pouco disse, enquanto os dois despejavam vinte anos de conversa e sentimentos acumulados em cima de mim, e eu olhava para um e para outro, sem compreender completamente o momento. “- É normal”, comentei a respeito, quando nos dirigíamos para almoçar num lugar que não chegava. Na verdade, não era normal, era possível que algum dia acontecesse, apesar de não acreditá-lo provável. Chuva, lama, mato e frio formavam a paisagem que eu enxergava de dentro do canto onde havia me encolhido, enquanto ouvia as mais belas palavras da minha vida. Nessas horas, devíamos ter um sistema de rewind cerebral, para lembrar exatamente tudo o que foi dito, sem perder nada e poder desfrutar novamente a emoção.

Após errar três vezes o caminho no jipe sacolejante, chegamos a um restaurante no meio do mato, sem luz elétrica, lareira acesa, lampiões e velas em cima das mesas de madeira e longos bancos com encosto almofadado. A dona, uma mineira simpática, sugeria as escolhas para o almoço e optamos por uma mistura brasileira-alemã: kassler com arroz e feijão, batatas coradas e legumes. Para acompanhar, um Anticuário tinto, retirado especialmente da adega, com o qual brindamos o dia, que seria assinalado na agenda do Mickey. Feitos os pedidos, ela desapareceu na cozinha, deixando-nos com seu marido, um sueco imigrado, amante do jazz e do ragtime, artesão de bonequinhos de chumbo, expostos numa vitrine de canto. Ele preparou coquetéis e escolheu a música, um lamento de Billie Holliday no som movido a bateria, para pontuar aquele quase monólogo. Afinal, “- esperava o quê de quem escreveu um texto durante dezessete anos, decorou na véspera e só teve quatro horas para falar?”diria ele alguns dias mais tarde.

Anoitecia e as velas foram acesas, a chuva fina e a névoa criavam a atmosfera de confissão, enquanto meu pensamento percorria os caminhos da vida e do retorno à noite. Passeava entre fantasia e realidade, entre passado e presente. Poucos outros momentos tiveram sobre mim um peso de realidade igual àquele e todos tinham sido perdas irrefutáveis. Daquela vez, era um ganho, mesmo que tudo se resumisse àquele encontro e a vida voltasse ao que era.

Eu já havia lido diversas vezes nesses livros de vida e auto-ajuda - acho-os bobos e previsíveis, mas leio de vez em quando - que determinados acontecimentos são decisivos para optarmos por um caminho. Nada acontece por acaso e tudo é um motivo para refletirmos e optarmos. De um modo geral, a minha tendência é acreditar nisso nos dias pares do mês e rir dessas teorias nos ímpares. Certa vez, ganhei meu mapa astral, encomendado a uma astróloga competente por uma amiga crédula e fiquei muito impressionada com a gravação de quem eu seria. Mas, passado o impacto inicial, a fita cassete foi para a gaveta, onde guardo tudo o que não serve para nada, mas evito jogar fora. Aquele era um dia quinze, o encontro queria dizer algo e eu teria vinte e quatro horas para assimilar.

O almoço terminou em fotografias, com a promessa de cópias e embarcamos novamente no jipe, para voltarmos à cidade. No caminho lamacento, enquanto a chuva continuava, caímos em buracos, limpamos os faróis e pensamos não chegar, com longos intervalos silenciosos entre os três, pensamentos soltos no impacto sobre nossas vidas. Tudo seria diferente dali para frente. Na despedida, os braços que me envolveram, num abraço de vinte anos, eram meus velhos conhecidos e senti, novamente, o aconchego proporcionado no passado. Respirei fundo e segui, sem força ou vontade de continuar o que havíamos ido fazer na cidade. As compras, com lojas já fechando, ficariam para outro dia e rapidamente arrumamos algumas coisas na casa, meio aturdidas, andando de um lado para outro, sem muita precisão. Era tarde e a descida da serra seria à noite. Saindo da cidade, voltei para vê-lo mais uma vez, com promessas de novos encontros e contatos. Retornamos ao Rio, ainda em estado de choque, música alta tocando no rádio, eu respondendo mecanicamente às perguntas de minha amiga, rindo de suas suposições, tentando minimizar o efeito do dia.

Ele havia sido meu primeiro amor. Aquele amor que significa o mundo quando temos quinze anos e a vida pela frente. Ele havia sido meu sonho, meu sol, minha esperança e descoberta. Havíamos namorado em duas ocasiões próximas e difíceis para mim, quando tive consciência das primeiras perdas em minha vida - meu avô, meu padrinho e ele mesmo, quando foi embora. Eu só teria um outro ano tão duro como aquele, muito tempo depois, quando perdi minha inocência e descobri, meio tarde, que o mundo não é cor-de-rosa. Durante anos, ele esteve presente em mim, guardado em um lugar só dele, iluminado pela luz de seu próprio brilho, ligeiramente magoado, porém único.

Naquela época, separamo-nos por todos os motivos e por nenhum. Éramos muito jovens, éramos teimosos, inexperientes e ainda seria preciso ganhar e perder muitas vezes para que as idéias de dois, pudessem permanecer diferentes, mas trilhando o mesmo caminho. Rasguei e queimei cartas e fotos, dei presentes recebidos, quis arrancar da memória o sujeito que havia sido uma promessa inteira e me entregara apenas metade. Mas, todas as vezes em que subi a serra e em que recordei aqueles anos, lá estava ele, absoluto, em seu lugar primeiro.

Eu precisava digerir a declaração recebida e, no fim da viagem, resolvemos jantar num italiano simpático, com bom vinho. O marido filósofo foi convocado e, pacientemente, ouviu-nos reproduzir várias vezes, do início ao fim, o dia e o encontro, enquanto atropelávamos palavras, gesticulando e fazendo brindes. Quando deixamos o restaurante, sentia-me meio embriagada, levei-os para casa, retornando pela Lagoa, olhando suas águas e temendo acordar no dia seguinte e descobrir que tudo não passara de um sonho.

O domingo ensolarado alcançou-me em cheio, com compromisso agendado - almoço com amigos sem assunto, numa tentativa inútil de me concentrar em meu presente. As conversas variadas ecoavam em minha cabeça, como se eu estivesse a um passo de desmaiar. Nunca desmaiei em minha vida, não que eu lembre, mas acredito que seja aquela sensação. Tudo fica meio preto ao redor, o foco diminui e os sons vão ficando distantes, como se as pessoas estivessem falando ao longe. A tarde foi embora com a mesma fúria das lembranças do dia anterior, e até o fim da noite eu tomei a decisão de voltar a vê-lo.

Meus sentimentos sempre foram melhor descritos no papel. Fica mais fácil, porque tenho tempo para pensar na palavra correta para exprimir o pensamento e não deixar margens a dúvidas. Nos tempos de novas e mais rápidas tecnologias de comunicação, resolvi enviar um e-mail para ele logo no dia seguinte. Eu não queria deixar o impacto inicial esmorecer, o susto motivador de sua torrente de palavras poderia se transformar em nada mais que um susto e tudo voltar ao que era. Depois do que ouvi, mais uma página tinha sido virada e eu tinha a intenção de continuar a ler - ou melhor, a escrever - aquela estória.

Passei a manhã e parte da tarde imaginando o texto internético. Deveria ser curto, não piegas, maduro e um pouco misterioso para instigar curiosidade e vontade. Deveria mostrar a minha surpresa e o meu agrado com o encontro, mas sem grandes concessões. Enviei a mensagem que resumia o meu pensamento e passei o resto do dia à espera de uma resposta. A expectativa me afligia e vi-me consultando a caixa postal de meia em meia hora, olhando fixo para o telefone, como se isso o fizesse tocar. “-E se mais alguém lesse? e se a mensagem, num desses acasos, não tivesse sido enviada corretamente? e se ele não consultasse sua caixa postal todos os dias? e se o provedor quebrasse? e se o endereço estivesse errado?” eu olhava pela janela de meu escritório e imaginava as cenas mais estapafúrdias, todas contra mim, me penalizando de alguma forma, como se o nosso contato nunca mais pudesse ser estabelecido, ele prisioneiro na Sibéria e eu, sem notícias, concluindo-o desinteressado. “- E se ele simplesmente não quisesse responder?”

Respondeu-me naquela madrugada, ele não dormia e eu não conseguia me concentrar no trabalho. Durante toda a semana, trocamos mensagens internéticas, expondo, a cada vez, um pouco mais de nós mesmos. Eu entrava e saía de reuniões e me pegava viajando no meio delas, lembrando de gestos, palavras e do abraço da despedida. Minhas manhãs eram dedicadas a consertos e reformas de utensílios da casa e compras de objetos necessários. Quanto mais eu me ocupava com tarefas variadas, mais pensava nos últimos dias. As pessoas falavam comigo e eu balançava a cabeça em compreensão do que sequer tinha ouvido. O toque do telefone me fazia saltar da cadeira e eu testava o celular para saber se ele estava funcionando.

No fim da semana, viajei novamente. Era preciso vê-lo, imperativo que os olhos se encontrassem, mãos pudessem se tocar, que a conversa fluísse, que falássemos os dois. “- Não precisa correr, não! -” ele disse, enquanto eu andava em direção ao portão para abrí-lo. Acabei dando uma corrida curta e ele emendou, “ - agora não precisa mais, já te vi.” Era o nosso segundo encontro, nosso segundo abraço e dessa vez, meu sorriso era nervoso, como meus gestos e meus passos. Ele não se sentia muito bem, tinha a aparência meio esverdeada, pela noite maldormida, pela semana ansiosa. Conversamos o que era possível, toda a vida em duas horas, grandes silêncios e muitas perguntas por fazer.

Um casal amigo estava comigo e quando ele foi embora, contei a nossa história, começo, meio, fim e recomeço, pois se eu tivera alguma dúvida até ali, ela se dissipara. Aquele era um recomeço, dezessete anos, muitas idas e muitas lágrimas depois.

Dias depois, na véspera de nos vermos mais uma vez, não dormi um sono bom e em breves momentos, sonhei com ele, com a cidade, com o futuro. Eram sonhos agitados, misturados, anjos e monstros lutavam em desigualdade. Ele chegava, dissipava meus temores e ficávamos sós. O terceiro abraço foi quente, promessa forte de dias futuros.



MPV – Maio 2000

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